terça-feira, 25 de outubro de 2016

Areia e pedra

Na areia branca, alguém. Olhos fechados. Procuro alguma fresta entre seus cílios para ver se acho a porta de entrada. Nada.

No cimento, me racho em cânions entre o que tenho, o que faço e o que sou.
Insisto, que nem goteira em piso seco, em quebrar concreto pra fazer terra infértil virar flor, sentir amor, ser mais que cinza.
Achei que a aridez estava fora, mas a vida é uma casa dos espelhos que, mesmo distorcidos, só podem oferecer reflexos.

Na pólis pred(i)ada, alguém. Olhos nas mãos. Procuro algum desvio no olhar fixo para ver se consigo furar a bolha. Nada.

Ao redor, o que acontece dói. Nos perguntamos se há saída para tanto apuro, pra tanta gana de estar certo ao invés de fazer menos errado... Mas o sentimento que ainda existe, já enuncia seu fim.

No meio, não sobra coração na produção mecanizada. 
As batidas são rebatidas pela rapidez imputada pelo raciocínio lógico.
Não há lugar pra ansiedade no caos, é lá que ela é toda.

O presente flutua no infinito e o desamparo de viver deixa o agora pra depois.

A falta de tempo é medo.
A ausência da falta não é um não-estar, mas um já-estar acostumado a ela.

Nas esferas de um planeta raso, tentamos ser sólidos.
Mas até a areia, pedra desfeita, memora que um dia dissipou tudo que achou que era.



quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Pequenos desesperos do cotidiano

Sentado no bar, confraternizando dores e alegrias, de repente foi assolado por tudo o que significava viver aquele momento. Viu o garçom, olhou desesperadamente para os que estavam ao seu redor, sem conseguir expressar de forma alguma as reviravoltas de suas entranhas.
O rosto continuava sereno, os olhos só revelavam seu dentro se alguém realmente quisesse interpretá-los. Nada.
Entre todas as opções do cardápio, não encontrou nenhuma.
Olhou para o copo e logo veio aquela ideia de meio copo cheio, mas o dele estava vazio - completamente vazio -, a cerveja tentava acalmar seu sangue, ao menos, já que seu dentro estava incendiado.
Perante àquele vácuo privado, achou que conseguiria falar tudo que pairava ali, como elefante, sobre ele. Abriu a boca e todos o olharam, queria pedir ajuda, mas acabou pedindo:
- Mais uma, por favor.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Cem metros rasos

A gente se apaixona pelo desconhecido. Pelo friozinho na barriga de não saber o que vem em seguida.
Poucas são as vezes em que realmente temos interesse em conhecer quem está recebendo nosso afeto. E, muitas vezes, quando é inevitável conhecer esse alguém, pensamos "o que que eu estou fazendo aqui?". Mas essa é uma das inevitabilidades da vida.

É como se o começo ou a tentativa de amor fosse uma prova de cem metros livres. Basta mergulhar e você pode nadar em qualquer modalidade, apenas se dedicando a cumprir aquela distância. E como é bom isso de ser livre e você poder escolher a modalidade, mas... a raia acaba. O outro lado da piscina chega e, mesmo sem fôlego, precisamos sair dela.

De repente você se dá conta de que não está mais na água. Há linhas brancas no chão e competidores alinhados a você para ver quem vai ser a mulher mais rápida ou o homem mais rápido do mundo.

Os cem metros livres viram cem metros rasos. E não só como nome de prova, mas como profundidade de sentidos. O livre se transforma no mais eficaz e o momento inicial do desconhecido vai, tímida e tristemente, se transformando em prova. Então, do nada, você tem que se mostrar a melhor pessoa do mundo. Pelo menos daquele mundo, naquele momento.
Mas será que precisa ser assim?

O amor se transforma quando a gente conhece alguém e deixa de lado as modalidades, as distâncias a serem cumpridas, os treinos... Quando a gente esquece o mergulho e entra na água de barrigada.

E aí vem você. Bala de canhão no lado fundo da piscina. Corrida descalça no chão de terra batida.
Sem campeonato, só (des)graciosa, mas verdadeiramente, alegrando a vida.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Sou

Há certo tempo, eu achava que tinha que ser perfeita em tudo. A melhor filha, a amiga que nunca erra, o amor que nunca falta, a profissional reconhecida, o exemplo.

Há não muito tempo, eu achava que se nunca viajasse pra fora, a vida não teria valido a pena, que se não soubesse dirigir e tivesse um carro antes dos trinta seria motivo de vergonha e que se voltasse a morar com minha família ia ser ridículo.

Aí eu vi que na verdade não era o outro que queria tudo isso de mim, era eu mesma. Que não eram as pessoas ao redor que iam se decepcionar, mas eu mesma, pois quem vive meus dias sem esses itens de status, sou eu. Cada um está mais é preocupado com sua própria vida. Isso me incomodava demais. Acho que principalmente pelo fato de eles estarem certos.

Eu ainda quero muitas coisas, mas não preciso delas. Algumas das metas se mantêm, é importante ter metas, mas só como ponto no horizonte, para servir como um norte. Acho que o que eu consegui ver é que ir um pouco em direção aos outros pontos cardeais me salvou de mim e de toda a nocividade que eu me causava, achando ainda que a cobrança era do outro.

Essa coisa de aniversário tem sido um peso pra mim há muito tempo. Nunca soube muito o porquê e acredito que talvez em análise descubra, mas acho que existe uma pressão de pensar até onde cheguei, onde estou, para onde irei, principalmente considerando a idade e o que todos esperam que eu já tenha nessa época.

Há não muito tempo, resolvi deixar um pouco de lado a preciosa imagem que tinha construído de mim e fui tentar ver o que é que tinha pra mim além de mim. Me perguntava o que será que eu era além do que eu esperava. E não ache que vou colocar aqui que encontrei algo extraordinário, até porque nem acho que a palavra certa seja "encontrar". Mas eu senti que eu não sou nada demais.

Nossa! Como assim? Você está se depreciando? Não, porque também sinto que não sou nada de menos. E foi um alívio. Claro que esses alívios passam e ainda bem, mas consegui me enxergar com mais verdade e olhar pras pessoas ao meu redor com mais verdade.

Aceitei o fato de que posso e vou errar, de que vou ser o pior e o melhor de mim, algumas vezes demais, outras de menos, mas que independentemente de qualquer ponto da curva da vida em que eu esteja, eu vou ser eu. Com imagens construídas ou não. Com carro ou não. Com passaporte carimbado ou não. Com erros e acertos, conquistas e perdas, vergonhas e orgulhos, eu ainda vou ser eu.

Ainda vou aprender muito como filha, errar muito como amiga, faltar com amor e ser um exemplo a não ser seguido. Quanto ao reconhecimento, muito mudou. Uma das maiores lições e honras da minha vida foi perceber, de verdade, não só da boca pro mundo, que reconhecimento não vêm em números, palavras ou apertos de mão, mas em olhares e em momentos de vidas que eu não vou acompanhar ou saber, mas construir. Ser reconhecida sem que ninguém me reconheça é algo indescritível. Sou muito grata a mim mesma por ter me arriscado e tentado me aproximar da minha essência. Claro que não fiz nem farei nada sozinha, mas tudo na nossa vida parte da gente.

Não estou liberta ou em paz, nem me achando ou me humilhando, só aceitei que no fim das contas e das linhas eu sou eu e isso basta.


domingo, 22 de maio de 2016

Abandono

Eu te espero voltar.
Como a mãe que espera não só o pródigo, como o cão que espera não só o mestre e como o filho que pode ser tanto aquele que ainda não sabe que a mãe não o abandonará, como aquele que ainda não conseguiu entender que ela o abandonou.

Ah, se fosse mais um caso de coração partido por um parceiro romântico, um pouco de tempo e brigadeiro talvez resolveria. Ou se fosse um caso de desordem familiar, talvez alguns anos de terapia ajudariam. Mas não estamos falando do clichê.

O abandono de que falo não fui eu que sofri, mas também o sinto. E além dos animais, das crianças e dos idosos, passivos desse horrendo verbo transitivo, que apesar de pedir complemento, escolhe deixá-lo para lá, existe também o abandonado ativo: que abandona a si. Assisti-lo dói e faz a gente querer acolher, assim como o animal, a criança, o idoso. Mas quando falamos de um abandono de si, aquele que abandona e o que é abandonado repousam no mesmo corpo e é só esse corpo que pode readmitir o encontro, o acolhimento.

Quando você resolver voltar, quando desistir de desistir de si, estarei aqui, além desse tempo em que você se abandonou e saiu por aí. Continuo aqui.
Eu ainda espero poder te ver voltar e peço que volte logo, porque eu sei que você se sente falta. Eu também.

sábado, 21 de maio de 2016

Vidas

Há vidas que têm dificuldade de permanecer em constante laço com o chão. Preferem o atrito dos amores, das dores, das nuvens. Não se perdem, pois não tem como objetivo encontrar-se. Voam e vivem, mas sofrem quando precisam pousar. Afinal, as relações acontecem quando os corpos tocam a terra, mas se eternizam na etereidade dos sonhadores.

Há vidas em que não importa ter onde morar, se se é proprietário das vontades que se acredita ter. A elas fica a ilusão-verdade de serem donas de si.

Há vidas que têm que lutar para viver. E não é na gravata, no que se considera trabalho, na renda. É na resistência de suas células, de suas almas ao que o mundo tem para oferecer.

Há vidas que não querem ser vividas e passam despercebidas pelos olhos do tempo. Outras que se aprisionam em seu próprio querer e definham, lentamente, na vontade de ser o que não desejam.

Que vida vivemos?

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Deixe

Deixe o cabelo desgrenhar, a barba crescer, as noites passarem mal dormidas.
Não se depile. Deixe suas células e seus pelos sem cortes, sem aparas.
Cresça inteiro de novo.

Tente se reconhecer.
Não sinta fome, perca a ideia que tinha de quem você era.
Perca horas olhando pro teto. Dê a si o direito de não ser produtivo. Só seja qualquer coisa semiviva.

Atinja o lado baixo de si. Reconheça que está ali e respire.
Espere passar. Lute com tudo na sua cabeça que diz que não dá mais ou que quer voltar atrás.
Dê tempo para o tempo que não quer fluir.

Finalmente durma. E acorde.
Abra os olhos, mas cuidado com a claridade.

A selva que antes o ameaçava com predadores e plantas venenosas, aos poucos se abre em uma clareira. Ela teve o espaço de ser e agora vai ter espaço de abrir outros ciclos.

A intensa dor que sentia e impedia de pensar em qualquer coisa que não ela, vai anestesiando.
Ela pôde ser sentida em toda a sua intensidade e, aos poucos, perde sua função, sua pulsão.

Veja onde esteve, onde está e onde quer tentar.
Vá. Deixe seu cabelo, sua barba, seu pelo, seus medos, como preocupação para tempos de recolhimento. Esse não é um deles. Não mais.

Vá e deixe. Se deixe. Ser.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Fronteira

Há dias não durmo. Fico cansado durante dias e noites, mas quando os olhos fecham, encontram uma mente intranquila. As pálpebras ganham mais e mais peso enquanto minhas calças se alargam ao meu entorno. E mesmo meu corpo mostrando ser imperioso o descanso, ele me trai em desejos e lembranças que constrangem e doem demais para serem desligados.

Deparo-me com uma visão de mim como terreno neutro. Nem guerra, nem paz. Nem dor, nem conforto. Plácido e revolto, meu rosto, palidamente corado, não desenha começo ou fim. Refém de ocupações que a ele pertencem.

Fumante passivo. Monumento que se torna paisagem, não atraindo olhares, mas estando presente no campo visual de todos que passam. Contenho sentidos provisórios que dependem do olhar do outro para existirem, mas que só são sentidos em mim.

Uma imagem nítida de meu corpo como um território de fronteira me amedronta, persegue e faz-me desviar do caminho. Perco-me em rotas familiares. Linhas imaginárias me atravessam, trópicos sem equador me tornam tórrido.

Fronteira: nem cá, nem lá, mas entre. Ponto de apoio político para apátridas, demarcador cultural para amnésia, porto (in)seguro para refugiados.

Há dias não durmo. Mas sigo marcando espaços, fazendo laços entre territórios que não querem, mas precisam estar ligados. Mesmo cansado, sinto que, de qualquer forma torta, abrigo uma revolução.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

A solidez dos relacionamentos líquidos


Então, de uma ideia que tenta transmitir certa liberdade, a liquidez dos relacionamentos se tornou obrigatória. Entre amigos e amores, as palavras de ordem são “liquidez”, “amor livre”, “encontrar-se” (perdendo-se em mil outros corpos), “viver o momento” etc. Não que haja um problema em viver e se relacionar dessa forma, mas ela se tornou mandatória. Quase não há escapatória dessa maneira “inovadora”, mas pré-moldada, de se relacionar.

Se você descobre que, na verdade, prefere não ficar com várias pessoas, que não se sente bem numa liquidez em que o cuidado e o carinho escapam pelos dedos, você está atrelado a uma ideia de pertença e domínio que é retrógrada. Porém, escapa de alguns que não é o fato de não se sentir à vontade com um relacionamento aberto que as cobranças serão feitas de uma maneira mais intensa ou que até existirão. Toda obrigação prende a gente, mas ela pode estar presente tanto em alguns relacionamentos "tradicionais" quanto no fato de necessariamente precisarmos nos relacionar dessa maneira "livre".

Falta um senso de responsabilidade ao se relacionar com o outro. Responsabilidade pelo que causamos e pelo que queremos. Pelo que causamos por acharmos que o outro se enganou sozinho, que construiu expectativas sozinho, ou até que errou sozinho. Não, em um relacionamento nada acontece sozinho, nem o erro, nem o acerto. Já a responsabilidade pelo que queremos é assumirmos para nós mesmos o que procuramos, o que podemos oferecer e o que esperamos ter de volta. Posicionar-se e assumir o que desejamos implica eliminarmos possibilidades de relacionamento com pessoas que poderiam nos proporcionar momentos muito bons, mas que só seriam bons até determinado ponto, virando o avesso disso a partir do momento em que percebemos estar fingindo ser algo que não somos para cativar a atenção dos outros.

Acredito que a liquidez está tão em voga que hoje parece estar sólida. Se tornou um obstáculo para o que poderia acontecer de forma natural, mas que encontra uma barreira por ter que respeitar a liquidez do outro, que agora não pode querer se envolver de maneira mais profunda, e até se propõe ser líquido só para tentar conquistar alguém. A monogamia não está na moda, a tendência é ser plural, mas as tendências não deveriam ditar comportamentos, mas ser reflexo de determinado grupo. Sempre podem (e devem) haver exceções.

É praticamente intransponível o limite imposto por alguns relacionamentos descomprometidos e líquidos. Ficamos presos fora ou dentro deles e essa liquidez se transforma em um muro, colocado entre uma possível ponte entre o eu e o outro, barrando uma conexão que consiga vencer os vapores do que se entende por liberdade, mas que aprisiona os corações, por vezes no lado raso das relações.

Nos levamos tão a sério que o que era sólido e poderia derreter, hoje é líquido e tende a se solidificar e tornar fronteira entre o que é esperado e cultivado pela sociedade e o que somos e queremos com todo o coração.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Primeiro de abril

Foi no dia 31 de março de um ano bissexto que comecei a amar você. Fiquei preocupado de descobrir no dia seguinte que era mentira. De acordar enviesado e me irritar com um pedaço de você que ainda não conhecia bem. Ainda ficava desconfortável com novidades.

Amanheci tranquilo, observando como meu humor evoluiria. E como meu amor por você evoluiria.
Fiquei em dúvida se toda essa pressão alteraria algo, mas logo lembrei que se fosse pra ser, nada atrapalharia.

Na hora do almoço me senti um pouco sufocado pelo peso da sua presença na minha vida, ao ver uma outra moça bonita e não ter vontade de falar com ela, como teria no dia 29 ou 30.
O que aconteceu foi que o amor evoluiu, nada atrapalhou e não tinha mais "se" no era pra ser. Simplesmente era.

Foi no dia primeiro de abril que a mentira mais verdadeira da humanidade contou sua história e se inscreveu na minha: o amor.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Jaula

O que podemos fazer um ao outro sempre me encantou.
A mão no rosto para conforto, o gesto da criança fazendo carinho, o abraço tímido de duas pessoas que se descobrem par, o perdão entre pais e filhos, o sim.
O preparo de uma refeição para a partilha, o choro solidário, a parceria na hora de lutar e até o incentivo de um desconhecido que ouve verdadeiramente sua história e dedica toda a energia de seu coração para desejar que você seja feliz, sem vínculos.

Porém, o que mais me surpreende é quanto podemos nos desligar desse laço de afeto humano para fazer algo só por nós mesmos. E vamos em um egoísmo tão cego que, depois de derrubarmos todos ao nosso redor, só resta nosso corpo, que, no fim, também precisa cair. Chegamos a precisar vencer a nós mesmos. E nem notamos que somos o inimigo, desde o início.

Assusta-me o quanto ainda reverbera uma suposta superioridade sobre os outros, sobre os animais, sobre a natureza. O quanto emerge em alguns um sentimento de competição e de "mais saber" que supera qualquer tentativa de amar e respeitar o outro. É nessas horas que suspeito que o eu é maior e mais forte que o amor.

Seja em câmaras de tortura ou de deputados. Em amores nascidos ou abortados.
No dia a dia, na falta de empatia. No considerar o diferente invisível, em marginalizar uma vida que, assim como a sua, é vida.

Cada vez me sinto mais colada e ao mesmo tempo distante de tudo isso. É como estar solto dentro de uma jaula, que nós mesmos trancamos e jogamos a chave longe.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Estranho

Estranho como nos tornamos estranhos. Eu e você.
Do lugar em que eu te via, sentado do outro lado da mesa, você agora se apaga.
E, na imagem desse momento em minha memória, onde a minha mão segura a sua, começo a sentir um vazio: sua mão perde matéria enquanto você desaparece do meu afeto.
Do lugar de onde você sorria e em que meu sorriso, em sincronia e sintonia com o seu, se eternizava em um momento de ternura, mistura-se a partida e o desapontamento do fim.

Estranho como nos tornamos estranhos. Eu e eu.
Na injeção letal do tempo na vida, me sinto o êmbolo entre o líquido da juventude e o nada aéreo comprimido em ideias plásticas do que não temos mais, mas ainda buscamos, pressionamos.
Como o êmbolo, fico em meio ao presente e futuro, juventude e passado, num entre-lugar sem lugar. Sinto a pressão da mão que aplica a injeção na vida e que se faz na minha vontade, em quem eu sou e, logo, não posso mais ser ou vir-a-ser.

Estranho como somos estranhos e como isso é estranhamente normal.

domingo, 10 de abril de 2016

Linhas

Nas linhas de um texto outro, me perdi na lembrança de beijar cada pedaço do seu rosto repetidas vezes. Nem sei mais se criei a memória ou se ela realmente existiu. A cada dia que passa me distancio mais de você, da "gente".

Sei que esse é o caminho quando um relacionamento não dá certo: afastar-se.
Mas também sei que aceitar e repetir esse movimento é desistir de sermos dois. E isso dói.

Eu vou ficar bem sem você e você sem mim. Mas não precisaria. Poderíamos ter construído tanto... A verdade é que quando o coração não sincroniza minimamente, o melhor caminho é esse: separado.
Bifurcamos no que queremos e podemos oferecer ao outro e isso é irremediável. Caminho sem volta (?).

E não há mais previsão de nós. De contato, de encontro. E me incomoda o fato de termos que deixar para o destino marcar o nosso esbarro. Provavelmente acontecerá quando já tivermos esquecido tudo de importante um do outro e iremos passar quase como desconhecidos. A fratura exposta desse nós que não foi, já estará estabilizada com seus pinos, junto aos outros machucados que tivemos. Eu não queria ter ou ser fratura, mas também não poderia ser costura de outros pontos, esparadrapo.

Seu corpo começa a se apagar e o meu exige uma resposta.
Mas são linhas vazias de algo que não se diz, mas acena: adeus.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Olhar

Você me olha. E sou eu que me vejo.
Na carne fraca, na saudade sorrateira, no deixa pra amanhã que timidamente quer ser hoje.
Na sua incompreensão do meu desejo por espontaneidade. Que eu também não entendo. Mas preciso.

A saudade, ah, a saudade, vem galopante mostrar que, por mais a gente se sinta inteiro, não estamos completos. Podemos ser mais. Queremos ser mais.

E, quando queremos, transformamos o desejo em tantas outras coisas. Desenhamos uma história de nós dois em dias banais, em noites chuvosas e em tardes na biblioteca.
Também brincamos de metamorfosear a demora em recompensa, o depois em agora. Mas só quando a gente quer, com cada pedacinho do nosso corpo.

Porém, os meus e os seus medos se enfrentam e nem sempre existe um ganhador.
A gente deixa de amar pra ter razão. Pra ter controle. E perde, na ilusão do domínio de si, oportunidades de construir felicidade.

E a solidão, apesar de necessária, amarra nossos braços, fecha nossos olhos e poros pro amor.
Libertar-nos dela é uma missão auto-heroica. Para nos salvar do endurecimento do coração e do pretear dos sonhos.

Como em cimento fresco, rabiscamos impressões no outro, deixamos nossa marca e, quando paramos de cultivá-las, endurecem. Sobra a estaticidade do abandono na massa, que fica emoldurada nas calçadas de nosso tempo, de nossa memória, de nós.

Você me olha. E eu vejo.
Alguém, que como todos, tem medo, mas também tem uma vontade de amar maior do que tudo. Que não pode cimentar seu coração a espera de um herói, mas que tem que salvar-se, antes que o cimento seque.

quinta-feira, 31 de março de 2016

Borboletas

Mesmo sabendo que o pouco que tinham havia acabado e que o encontro era de ordem prática e não romântica, preparou o corpo e a alma para receber e dar amor. Ela sabia que iam só destrocar livros (trocados em um surto de compatibilidade intelectual e de interesses), mas, mesmo assim, arrumou-se com detalhes que ele já havia revelado desejar e valorizar. Um colar, uma peça de roupa branca (em sinal de paz) e um coração honestamente aberto. Correu para se olhar no espelho do banheiro quando ouviu o som da buzina e ensaiou um sorriso só para ver como ele a veria. Estava bem.

Controlou a velocidade dos passos para não chegar à porta tão rápido quanto o coração regia suas batidas e mais uma vez se perguntava por que se sentia assim, se sempre soube no fundo que nada seria ou sairia dali. A verdade é que ela poderia tê-lo amado muito mais, mas por já interpretar seus sinais, conseguiu segurar um pouco os prazos da expansão do amor. De certa maneira isso a entristecia. Amores que poderiam ser e não são. O fato de que as coisas podiam ser simples. Mas não são.

Girou a chave com cuidado e antes de tentar olhar em seus olhos no breu (precisava mesmo trocar aquela lâmpada), enquanto saía, tentou enfiar a chave na porta sem ver a fechadura, para livrar suas mãos. Caso ele conseguisse amá-la de volta, queria ter uma das mãos livres, já que a outra segurava os livros. Esqueceu-se dos bolsos (para as chaves) e da mágoa (para ele). Amassou os lábios como quem se prepara. Virou-se. Lembrava de olhos fechados o caminho de seu ombro até a nuca. E sentia falta. Mas o amor não calhou. Às vezes a gente não pode amar. Não consegue amar. Não quer amar.

Um abraço frio, um beijo no rosto sem quase toque. Já havia amado mais intensamente e sido rejeitada ou rejeitado de forma mais intensa ainda, mas aquela frieza marcou seus dedos no coração dela. E segurou-o durante a conversa (a)fiada de nadas, soltando-o só no fim do contato visual. Achava até que um pequeno pedaço havia necrosado.

Duas dúzias de palavras trocadas enquanto faziam o mesmo com os livros. Sem sentido ou necessidade, chegaram até a se repetir. Silêncio/adeus. Mais frio ainda. Um terço de abraço e um trisco de beijo. A porta da casa e a do carro fecharam quase sincronizadas.

Enquanto voltava para seu quarto, esboçando um não, com o semblante para o chão (sinal clássico da derrota do amor), pensava, novamente por que havia se colocado naquela situação. Pensou até em culpar o rapaz, decorrente do vício pós-moderno de se vitimizar. Afinal, ele que fez questão de escrever poema e envolvê-la. Mas ela também havia feito questão de tentar. 

E enquanto a construção social da mulher como louca a fazia questionar tudo o que tinha falado e sentido até então, resolveu ouvir a voz que tanto calam: não é preciso ter razão, mas assumir seus sentimentos com todo seu corpo, sem vergonha de seus pelos, poros e medos. Por sua sanidade, por uma possível felicidade, era imperativo deixá-los serem o que têm que ser. Aceitar que existem coisas que a gente não controla. Sensações, amor dos outros, borboletas. Outras, a gente pode deslocar, resignificar, amar. E não perde quem ama. Mas quem não consegue (se) amar.

terça-feira, 22 de março de 2016

Clareie

Tenho andado nua por aí. De mãos dadas comigo. Não que ninguém saiba, mas nem precisa ser de conhecimento público que tenho me sentido assim, unida, ao lado de mim. Não é algo que dê pra ver, mas alguns podem sentir.

Com olhos curiosos, acompanham meu corpo, parecem não saber o que tem aqui e tentam testemunhar, nem que por um fresta, minha pele exposta. Mas é só pra mim que, por vezes, revela-se. E só eu posso permitir seu reflexo para outro alguém.

Abraço-me, mas isso não impede que eu abra um espaço pra mais um entrar nesse laço comigo.
Entretanto, vejo que nem sempre o espaço que abrimos é preenchido por quem queiramos que estivesse lá.

E o processo de começar a estacar os lugares que vamos preservar das inundações do (a)mar dos outros exige decisão. Não é questão de querer apagar sua história, mas de respeitar a nossa. De lembrar daquela dor, daquele choro, daquela lição. Que nem sempre são pro outro o que pra gente foi.

Às vezes a gente tenta consertar em nosso coração as batidas que faltaram de um amor anterior. Mas evitemos estar presos à escuridão de remediações do passado. Deixemos o que não foi na nãosidão e permitamos um sorriso que diz sim para o futuro. Pra vida, pro outro, pra nós.

Por vezes nos fazemos presentes até debaixo d'água, mas também nos sequestramos dessa presença, não fazendo questão de estarmos lá. Essa desvontade afeta o outro, magoa, mas é como garoa fina: molha pouco e logo evapora. Como nossa estada nas águas de lá.

Também pode ocorrer de percebermos o amor por um incômodo. Quando o coração acelera de raiva. De insegurança. Mas esse pode não ser o tipo de amor que nós nos preparamos para viver em cada gesto de bondade, em cada delicadeza, em cada momento de acolhimento. É como um fungo que se apropria de nossas casas longe da luz e do calor. E podemos perder ou tomar o controle.

Fechemos os olhos juntos, então, para que os sonhos nus brilhem em um só.
Escolhamos para nossas vidas o que sabemos merecer.
Que escolhamos clarear.
Que clareie.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Eu não acredito no amor

Eu não acredito no amor. Muito menos que ele é cego e surdo. Isso deve ser outra coisa. Não sei qual coisa, mas nesse amor eu não acredito.

Quando dizem que ele pode ser bandido, observo desconfiado por um triz de porta e vejo o veredito: fulano está submisso. Nesse amor eu não acredito.

Tampouco acredito que é preciso abrir mão de si para conseguir alcançá-lo. Quando é não correspondido, pra mim é só mais um rito obsessivo. Uma busca por algo que vive em nossos cantos ermos e que é urgente.

Também não acredito que o dito amor platônico seja crível, pois ter alguém envolvido em um momento indescritível não é a mesma sensação desse tal amar sozinho. Isso me parece masoquismo.

Não acredito que seja racional, muito menos louco. Sinto que adicionar um suspiro no fim de qualquer sandice o torna poeta e justifica qualquer trambique.

Pegamos sintomas de nossas doenças sociais, inseguranças, forçações de barra e mendicâncias e etiquetamo-os como se fossem tipos diferentes de amor.

Perdidos entre tantos padrões, acho que acabamos por patologizá-lo. Tentando normalizar e normatizar algo que não tem encaixe, forma ou receita, buscamos um lugar, aceitação e acolhimento. Mas o tal do amor não pode ser físico ou terapêutico. Procuremos cura longe do outro e perto de nós mesmos.

Não nego que eu digo e vivo esses tipos de amor, que procuro e curo no outro, dizendo que é em nome dele, mas mesmo assim não acredito.

Acredito na possibilidade de um amor diferente.

Não sei que nome teria, nem se poderia existir mesmo. Mas se um dia eu descobrir, encontrar, desvendar, acho que vou acabar usando mesmo o bom e velho verbo amar. Mesmo desacreditado.

Eu não acredito no amor, não quando é colocado como um rito.
Mas confio que basta (re)significá-lo para transformar o mito do sentimento do amor em sentido.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Café

Esbarrei em uma velha oportunidade na rua outro dia. Nem lembrava mais que ela havia existido, mas foi um cruzar de olhos e ela se revelou. Cansada, mas altiva, presunçosa, como sempre, aquela chance de amar sempre ficava escondida em plena vista.

Trocamos sete dedos de conversa e disse ao seu detentor que estava com um dia cheio, mas que poderíamos marcar um café. Talvez a ideia de escaldar aquela emoção causada por essa troca de nadas, fosse mais forte do que meu inconsciente pudesse disfarçar.

A gente troca muitos nadas por aí. Depois colocamos esses nadas em um lugar de admiração e fantasiamos que talvez pudessem ser suficientes pra gente acalmar todas as coisas que acontecem no coração. Mas nunca são.

Bater na porta que antes estava aberta é sinal de que aquele lugar que você ocupou um tempo atrás, não está disponível. Aquela oportunidade de amar era só mais um monte de vazios colocados no lugar certo, na hora exata. Mas mesmo assim era esperado que fôssemos lá, mendigar, pedir, implorar pra alguém nos amar. Nem que fosse só pra ser o último a dizer "não te quero".

Às vezes as (des)obrigações da vida pesam. Vêm pairando e aterrizam como avião em pouso forçado. Como um mergulho, em um dia frio, em mar revolto. Cada onda quebra uma parte na gente por sabermos que somos obrigados a agir e reagir de determinadas maneiras, evitando nos afogar. Podemos lutar contra isso, mas viver é uma tentativa eterna de desviar dos clichês, de remar contra a maré.

Entre tanta previsibilidade, no entanto, é humano tomar cuidado para não abrir alas vãs em corações que querem nos amar. Tentar eliminar o ciclo vicioso do vazio é cuidar do outro como se fosse nosso coração em jogo.

A gente pode deixa sarar no outro pra curar a gente. Mas sem escaldar no café a promessa de tentar amar diferente.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Fora

Amores exumados em mesas de bar, ensaios de vidas juntas que acontecem enquanto idolatramos a solidão. Estava parado em uma vida ficcional, de tão real que era. De tanto que sentia, só podia ser obra prima em plena criação.

Ganhava segundos a dois para ficar só e lembrá-los. Vivenciá-los às vezes dava preguiça. Abrir espaço em seu peito para a batalha naval dos enamorados não estava em seus planos. Parecia nó em pingo d'água.

Lembrava da última vez que tinha se sentido assim. E tudo o que seguiu. Queria deixar pra lá, não gostava de se sentir assim, fora. Fora do controle, de si, daquilo que já tinha se acostumado a lidar. Ou pelo menos que pensava estar lidando.

Dormiu um sono profundamente desperto para o lado de dentro, para o que estava tentando emergir. Ela estava lá, lindamente etérea, mas com o corpo que desejava. Buscava romper as linhas das cicatrizes que, por fora, só tentavam atuar como algo que o tinha deixado mais forte. Por dentro eram só um abraço esperando ser dado.

Acordou se perguntando onde morava aquela vontade de ser feliz que vez em quando surgia. Cigana, também oblíqua e dissimulada, no mundo dos que sentem, mas não têm coragem de sentir. Era preciso ser forte para ser triste e mais ainda para ser feliz.

Torcia para que ainda restasse tempo e para que se recriasse o amor, não da mesma forma de antes, de controle e insegurança, mas de um jeito novo. Fora do peito só de um, fora do outro e do comum. Que fosse amor, não jogo.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Sossego

Têm dias que tudo para de importar. É como se as coisas e as pessoas ficassem suspensas no ar, em silêncio. Mantendo um movimento espantosamente estático. Como se fosse um apelo do sossego, um grito instalado no peito, que trava um duelo na garganta, dando nó.

Às vezes o tempo passa e fica complicado lutar contra a gravidade para deixar penduradas as coisas com as quais não podemos lidar. A impossibilidade desse ato deixa o ar rarefeito e faz com que o que nos veste se transforme em peso, mesmo que estejamos nus.

E ainda tentamos jogar luz em todos os cantos, espalhar clareza e claridade onde não há mais estrelas, nem mesmo o sol. Ficamos tentando ocupar esses lugares escuros e aos poucos vamos perdendo a energia. Até que... Até que vem um apagão. Só que enquanto dura em sua dureza temos a oportunidade resgatar e recriar energia para que a luz volte. Tentamos nos tornar holofotes, focados e fortes só no que (nos) interessa. Mas a tentação da partilha chega como uma criança acanhada com medo do escuro, ou um velho que só quer um abraço, um olhar.

Restabelecemos o (des)equilíbrio das coisas e pessoas até que chega a hora delas ficarem suspensas no ar novamente. Será que com o passar dos anos elas demoram mais para voltarem aos seus lugares? Ou somos nós que prolongamos seu estado? Não sei. Mas ainda sinto o sossego querendo voltar.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Amor Frankenstein

Todo começo de amor é assim. Esperança, medo, lições de amores passados, regados pela tentativa de não ficar dando força a algo que provavelmente não é o que pensamos. Friozinho na barriga? Check. Saudade inexplicável que faz você mandar uma mensagem e se arrepender instantaneamente? Check. Vontade de contar pros amigos, mesmo sabendo que eles vão dizer "segura a onda", pois conhecem tanto você quanto todas as histórias horríveis de ex-casos que não deram certo? Check.

Mas neste carnaval pressinto que a melhor fantasia vai ser a mistura de todas as utopias escondidas em uma caixa qualquer na nossa mente. Vai rolar química, paixão, ciúme e desapego total, um mix de colombina com Cinderela, com havaiana e com aquela menina que não foi fantasiada, mas que despertou mais coisas do que Freud poderia explicar.

Nesse mix de acessórios, purpurina e confete, em meio a fantasias, metafóricas ou não, o começo de um novo amor é o descomeço de outros, ou até sua continuação, se não tomarmos cuidado. É uma alegoria que vem com potencial para mudar este e outros carnavais, mas que pode nem chegar na quarta-feira de cinzas.

Ah, se o Dr. Frankenstein soubesse que ainda cria vidas por aí, voltaria, pelo menos em fevereiro, pra prestigiar a mistura de ex-amores (mascarados ou não), vendo-os se transformar em projetos de ter alguém pra nos acompanhar o ano inteiro. Viva o carnaval!

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Tristeza triste

Às vezes a tristeza não é triste. Ela vem pra nos acompanhar em um dia vazio, como uma velha amiga que não encontramos há tempos. Sem choro ou lamúria, vem como um desassossego, desaforo para mexer o esqueleto.

E que bobagem tentar rejeitá-la, ignorá-la ou fazer de conta que não existe. A gente precisa mais é abraçar o que sente. No caso dela, abraçá-la como em uma despedida, deixá-la ir e vir como visita, para que possamos sentir como é tê-la longe. Se a ignoramos, prolongamos sua estada até que consiga de alguma forma se fazer notada.

O maior perigo da tristeza se dá se ela sumir de vez, sem chances de voltar. Aí já é sinal que, de tão familiar, já faz parte de nós, já está lá, como um segundo par de ouvidos que potencializa qualquer zunido em grito.

Enquanto estiver aqui, recebo de colo aberto a saudade que sentirei quando chegar a hora dela ir. Mas é daquelas saudades boas, que se dão quando alguém muda de planeta para ser algo melhor.