segunda-feira, 27 de julho de 2015

Dis(a)tração.

Tem gente que nos atravessa com o que não se pode ver. O olhar, a presença, o afeto, a química, a atenção. Um corte transversal: intenção. Atração que distrai a razão e trai os instintos.

Os poucos fios de cabelo branco em sua barba levaram consigo todas as minhas intenções. As boas, as más, as mais ou menos. Todas. De repente estavam agarradas com cada detalhe que meus olhos poderiam devorar. Deram um nó desgrenhado como seus cabelos e eu me deixei ser preso por aquele sentimento incomodamente bom.

Até aí, nada irremediável. Passamos mil vezes na vida por pessoas que despertam as atenções do corpo. Só que aí nos demos. Trocamos falhas e graças, segredos que todos sabem e humildes demonstrações de que somos alguém no mundo.

Toques no ombro querendo que você se toque. Incinerava-me com suas ideias. Libertava as risadas que estavam presas na garganta e as borboletas que quase me faziam levantar voo.

Estou aqui: atravessado, trançado, homem nu vestido de afeto. Dois iguais, mesmo sexo, querer e jangada. E se tem que ser algo, que seja tesão, porque o amor não "é", ele acontece.

Sinais

No carro que passa, na luz que apaga, no vento que mexe meus cabelos para o lado errado, nas estrelas a muitas luzes de distância, no que esqueço de lembrar e no que lembro de esquecer. Nesses lugares habitam sinais e respostas a serem construídas a partir de pedaços do outro em mim.

(Des)organizando o inconsciente, fertilizando sementes exóticas no que vejo, construindo expressões nos vincos de outras faces, vivo faminta por interpretações. Mesmo que não haja indícios, vou achar um significado para a sua desintenção, para a sua expiração, para o meu desejo de que a nossa vida tenha mais sentido do que razão.

Entendo a falta de significado como incompreensão. O que não pode ser dito ou lembrado, assim está por escolhas que não podemos alcançar. O despertar de uma intenção é sempre plural, entre esquinas e pontes, acertando passos e passados. Não é manobra fácil ou obra da solidão, pois até o silêncio é permitido em conjunto.

Sinais que vejo são declarações do nosso inalcançável íntimo, intimações do nosso subconsciente para vermos aonde podemos parar ou seguir no caminho, pontos que nunca são finais, apenas interrupções e atravessamentos.

Indícios, vestígios, rastros, traços. Representações, recordações ou presságios. Vêm de nós e são para nós, apenas sinais. Vitais.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

(Des)ocupação

E quando é que a vontade tinha se transformado na nova coragem?
Ter vontade era ter coragem. Eu achava que era o medo que desencadeava a coragem, mas na verdade é a vontade. A vontade de ver até onde podemos ir, até onde podemos nos impor, até onde o outro vai deixar que a gente se sobrepuje. A vontade de ver até onde a dor do outro dói, até onde o amor cura, até onde o imperdoável pode chegar.

Você vem querendo me mostrar que nada aconteceu. Mais uma vez tentar provar que o louco era eu. Sutilmente me dominar com uma menção de afeto envolto em espinhos que só dedo espetado sabe reconhecer.
Eu estive lá, sabe? Eu estive naquele lugar em que deixei você me colocar. No fundo da gaveta de suas inseguranças, na esquina do bairro vendendo amor por migalha de pão, no saco de lixo procurando espelho.

Eu peguei na sua mão e fomos nos afogar. Em piras sem cura, em culpas sem motivo. Eu tinha medo da sua mão, dela cansar de atravessar a minha alma e ir de encontro à carne. E mesmo assim eu fiz dela âncora. Nunca chegamos tão longe com ninguém, tão fundo no porém de conviver com alguém.

Na tentativa de ficarem puros, os corações cometem os piores erros, pois a pureza é o adjetivo mais cruel que possa querer sucumbir alguém. Essa mania da gente querer ser deus, deu nisso.

A nossa separação foi desocupar o lugar em que fomos parar juntos, sós. Dentro do buraco em que nos enfiamos, de costas um pro outro. Cavando novos túneis, mais pra baixo ou pra cima, não sei.
Me (des)ocupar de você não foi fácil. Tive que deixar pele e osso pra trás. Resignificar meu nome, relembrar meu eu.

(Des)culpado e (des)ocupado tenho a vontade da coragem e a lembrança do medo para me fazer seguir.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Vontade

Eles tinham tudo pra dar certo. Menos coragem.
Eram diferentes pontos de vida, que se encontraram em ebulição, em uma fila de motivos pra não se estar lá.

Apostaram que a intensidade desaguaria e passaria como temporal. E num descuido, veio um sopro de amor. Daqueles que levantam a saia da moça no meio da rua. Que desacorçoam o soldado perante a invasão. Que realocam fluxos sanguíneos na vontade de ser um só.

O beijo virava susto enquanto caíam nas invenções da pele no coração.
Esbarrando em novos caminhos, desmembrando expectativas, simplificando a possibilidade de serem mais que encontro na deriva, de serem pedra virando areia na onda. Desseguiam o rumo, descegavam a ilusão, desencontravam rio e (a)mar.

Escondiam a imensidão de serem mais que dois na bolha que era viver pros outros, não pra si. Mas quando precisavam de alento, refugiavam-se nos aparentes choques de realidade que o amor dá quando o aceitamos. Chamavam de lembrança, mas era mais uma tentativa de evocar a mão do outro pra dentro de si, num ensaio de consertar seu coração.

As multidões que habitavam seus corpos gritavam "não" a cada ameaça de separação e tinham como problema motivos para paixão. A saudade sorrateiramente aparecia como uma boia na arrebentação das amenidades. Queriam segurar mais forte na ilusão, ensaboada pelas quebras e falhas de projeção.

Escorregavam e colocavam o coração pra dormir. Vez em quando voltava formigando, mas eles ignoravam o incômodo da falta e seguiam. No fundo queriam a vida, antes que a perdessem de vista.
Eles tinham tudo pra dar certo. Menos vontade.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Ausência

Sentada em frente a uma tela iluminada, enrolada na toalha, o que sentia? Nada, não era nada.
Levantou, trocou-se, olhou-se no espelho e imaginou como seria seu rosto se fizesse uma plástica. Será que esse era o retoque que ela precisava? Não, não era nada.

Distraia seus pensamentos imaginando intenções de outros. Olhava com mais cuidado, pesquisava, racionalizava sua intuição desesperada e logo via que não era nada. Afinal, devia parar de procurar no outro o que queria ver em si mesma. Besteira, não era nada.

Barriga vazia, mesmo tendo comido agorinha. Precisava de mais alguma coisa para preencher aquilo... Abria a geladeira e, sob a luz que mostrava culpas e calorias, lutava consigo mesma e falhava, fechando a porta com as mãos abanando. Não, não era nada.

Rememorava aquele quase amor, as sensações, as imagens, o romance... Suspirava e logo lembrava: quase, pra ela, era igual a nada. Não era nada.

E de nadas e quase nadas continuava sua rotina. Sempre levantando a suspeita de que ela estava lá, mas a reduzia a nada, diminuía as vontades, sufocava as dúvidas, confinava as emoções e depois reclamava que se sentia vazia. Mas realmente não era nada, era ausência. Ouvia cada passo que dava, passos ocos, tamborilando cantos tribais (ou seriam triviais?): na-da, na-da, na-da.

terça-feira, 7 de julho de 2015

O grito

“Tô afim de ir a algum lugar, dar um grito”. Disse como quem nutria os últimos suspiros de esperança dentro de si. Ele ouviu. Pegou as chaves de casa e saiu andando chamando-a com a mão em um gesto estático, breve, mas com todos os significados que aquele mundo poderia dar. Ela seguiu.

Ele já sabia que ela era calada pelas manhãs e isso não o incomodava. Não mais. Ele havia deixado pra trás as picuinhas da convivência. Não havia mais tempo pra aquilo. Enquanto caminhavam, ela pensava em sua mania de achar que tudo deveria ter significado. Que nada que fazemos ou que fazem pra gente é sem intenção. A gente pode até não conseguir tocar, ver, ouvir, cheirar, essa intenção, mas ela existe. Um dos fios dos tecidos que nos compõem, é a intenção. Olhava para sua echarpe, ela adorava usar esses acessórios esvoaçantes, e pensava em qual teria sido o primeiro fio de seu tecido. Lembrou da amiga que a deu de presente e olhou pra frente, pra não tropeçar.  Ouviu um barulho de água.

Enquanto caminhavam, ele pensava sobre como poderia vencer aquele silêncio. Como fazer com que voltassem a ser o que quisessem ser, não o que poderia estar escrito em alguma folha do compêndio do universo. Estava exausto, mas ainda tinha força pra achar um lugar em que ela pudesse gritar. Em nenhum momento parou pra pensar o porquê dessa vontade dela de gritar, mas não importava. Só queria deixá-la ser. Ouviu o barulho da água, estavam chegando.

Quando ele escolheu aquele lugar como destino daquele fatídico dia, pensou que a queda d’água poderia ser útil em um momento de fuga. Não imaginava qual seria a reação dela ou o que estaria passando por sua cabeça, mas sentiu paz quando chegaram. Úmido. O ar era bem úmido, cheio de terra molhada, cheiro de água. Ela fechou os olhos e inspirou fundo. O grito não veio. Ela abriu a boca e a coragem estrangulada do grito se agarrou às paredes de sua garganta e ao céu da boca. Lentamente foi descendo ao pulmão – dava pra acompanhar o movimento pela mão dela no peito. Chegou. Tirou o ar. Secou. Ela olhou para o lado como quem pedisse ajuda, mas ele sabia que não podia ajudar. Nem se tirasse suas mãos de seu pescoço estrangulado ele poderia ajudá-la. Não havia nada mais que pudesse fazer por ela. Nem ele, nem ninguém. Ela dobrou os joelhos, agarrando o braço dele com força, como quem procurasse força, mas não lutou. Se deixou levar, sem seu grito, sem sua dor, sem ar, sem nada.

Afastaram-se e seguiram, cada um por sua margem do rio. Libertos.

sábado, 4 de julho de 2015

Inverno (parte 3)

Um encontro casual para os que passavam apressados por aquela rua, naquela hora, naquela manhã. Se alguém observasse com atenção veria dois corações saindo do peito, querendo se encontrar. De blusa amarela, chegava cheio de esperança e palpitações: ele (...ela ou a outra parte de um amor que era o caso que viria). Distraída, tropeçando nos próprios passos para o que o caminho lhe mostrasse aonde ir, a admiradora de árvores se sentia pronta para atravessar os rumos além do amor.

Poderiam ser de filos diferentes, semelhantes em suas divergências. Na primeira troca de palavras, na superficialidade, pareciam não ter nada em comum. Já aviso: não era um amor previsível, televisionável.
Mas eles não estavam presos a detalhes, estavam prontos para reescrever fábulas, queriam conhecer o limite.

O que tinham era carne, mas mais que corpo. Também era sonho, com requintes de Stephen King. Era medo, que possibilitava o nascimento da coragem. Era extraordinário, mas irritantemente simples - como a inevitabilidade do cessar da dor, de amar o que se espera que esteja lá e se desiludir, sobrevivendo às brevidades do amor. Era querer estar só, mas precisar acordar junto todos os dias. Era piada e lágrima... Era real.

Ela. Uma parte. Parecia perdida entre as folhagens das árvores que despetalavam o outono.
Ele. Outra parte. Peito aberto a favor do vento que liderava o caminho para o inverno.
Eram duas porções de um todo muito maior que dois. E se dispunham a acolher, como terra que espera a semente, o que viesse para compô-los nesse infinito que era viver e escolher não viver só.

Eles nem lembram quem falou oi primeiro, só lembram da sensação de perceber que o outro existia... Fotografado nos pelos dos braços, arrepiados até hoje. Quase me convidavam a ver, mas eu estava de passagem. Esperava reencontrá-los quando chegasse novamente. Que essa estação os preparasse para as alegrias da intimidade no verão, para as criações da mente e do coração na primavera, para as perdas que vêm no outono, mas que encontrassem abrigo no "nós" que decidiram criar quando eu chegasse no frio da obviedade do inverno.

Por eles, formigas e cigarras esqueceram suas diferenças e dividiram o que tinham no inverno. Se tinham, se deram. E entre tantas caminhadas que ainda dariam, a do primeiro encontro ficou marcada nas rugas de suas peles. Para os dois, parecia que estavam, finalmente, indo pra casa.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Levaram meu menino

O camburão foi chegando.
Meu menino tava assustado, com a arma que os caras lá de cima do morro deram pra ele na mão.
Ele agiu como se eu nem estivesse lá e eu percebi que dessa vez o negócio tinha sido feio.
Ele devia ter feito algo muito ruim porque as coisas que ele tinha feito antes não causavam tanto efeito assim.

Bateram na porta. Eram eles, buscando meu menino.
Pensei em tudo que eu tinha feito de errado, desde me envolver com o pai dele, até forçar ele a pedir esmola na rua. Mas o que a gente podia fazer? Não tinha o que comer. Mesmo com a ajuda do governo, era tanta falta que a gente tinha que a ajuda não dava. Precisávamos usar a única coisa que ainda parecia fazer os outros ajudarem, a inocência das crianças, como filhotes de cachorro que ganham pedaço de frango na rua. E quando a ajuda não vinha, eu ia em algum mercado do centro pegar alguma coisa pra comer. Uma vez fui presa e acho que foi ai que meu menino virou a chave.

Sempre soubemos do nosso lugar, que somos colocados como inimigos dos que têm. Do outro lado da rua da justiça, num lugar em que não temos direito de sonhar. E como impedir que meu menino procurasse os caminhos que procurou se não havia outros? Falam por aí que ele tinha uma escolha, mas essa escolha não chegou aqui na nossa comunidade.

Eu fiquei sabendo que teve uma mudança e que agora ele vai se juntar com os moços mais velhos que ele, mais experientes. Ele até brincava que se fosse pego, ia virar um bandido de responsa na prisão. Que ia encontrar o Rochinha, um traficante que foi pego aqui no morro há alguns anos, conhecido pela sua crueldade, e que ia aprender tudo o que precisava pra ser bem-sucedido.

Ele me disse que não sabia o que estava fazendo enquanto os policiais arrombavam, sem muita dificuldade, a porta do nosso barraco. Na verdade eu acho que ele sabia, mas não se importou em ser pego. Ninguém tem medo de cadeia, não. Todo mundo tem medo de passar fome de novo, isso sim. De ter que usar roupa rasgada e suja, de não ter água pra beber ou tomar banho. Já ouvi dizer que a gente não tem que ter ambição, que tem que se conformar com o que temos, mas quem não quer uma roupa cheirosa e um perfuminho pra se sentir bem? Nós também temos vontade.

Eles acham que tão fazendo a vontade do povo, mas ninguém pediu a minha opinião. Vai ver porque a gente não é visto como gente. Somos vistos como o outro, como o inimigo e eles querem vingança.
Levaram meu menino e agora ele não vai mais ser meu menino. Vai ser o homem deles. Da força que domina as ruas e não é a policial. Já tinham tirado os sonhos do meu menino desde pequeno e agora iam tirar o resto de infância que ainda havia nele.

O policial falou que ele tinha matado uma moça. Eu fiquei muito triste e pensei se fosse uma filha minha. Mas o meu menino tava morto por dentro faz tempo. Eu tentei, mas ninguém quis ajudar. Ia dar nisso mesmo.
É como diz aquela música que meu menino sempre ouve: "também morre quem atira".