domingo, 28 de junho de 2015

Cigarra (parte 2)

Saí de casa correndo, descabelada, colocando o sapato na rua.
Não tinha nenhum compromisso importante, era mais um ritual. Todas as manhãs caminhava até a livraria na rua debaixo da minha casa e pontualmente sonhava às 9h da manhã.

Cheguei, sentei, pedi um café.
Há alguns meses eu tinha esse estranho hábito de ir até lá e sentar sozinha, esperando que algo de maravilhoso acontecesse.

O café chegou, sem açúcar, do jeito que eu gostava. Enquanto o tomava, olhava para a porta, apreensiva. Era como se tivesse um trato com os universos paralelos para que aquela imponente porta de madeira maciça fosse o portal do amor da minha vida. Toda vez que lembrava disso, ria sozinha da minha imaginação.

Acabei meu café e deixei esses e outros pensamentos utópicos ao lado da xícara para que continuassem no dia seguinte. Será que a vida ainda reservava algo estranhamente maravilhoso para nós? Ah, que besteira.

Saí da livraria, caminhava descompromissada de volta para casa, pensando nos afazeres do dia.
Olhei para minha árvore favorita, com folhas amarelas, que já mostravam sinal de que o outono chegava ao fim.
Tropecei numa pedrinha que chamou minha atenção para o caminho. E foi aí que o vi.

Disfarcei meu rubor, mas ele me olhou. Parecia que tinha me visto bem antes de eu notar sua presença, bem antes, até, de nos encontrarmos. Era como se eu tivesse virado vidraça. Como se as batidas do meu coração fossem as cigarras que habitavam aquela árvore, cantando todas juntas, desacorçoando meus passos.

Fiquei paralisada, não sei dizer bem o porquê.
Percebi ele se aproximar e senti dentro de mim algo novo.
Muito mais que o amor.

(Continua - terceira parte: Inverno - http://giuliagambassi.blogspot.com.br/2015/07/inverno-parte-3.html)

sábado, 27 de junho de 2015

Louca

Eu sou a louca que canta e dança no meio da rua, sozinha, fingindo tocar algum instrumento. Eu sou a louca que conversa e manda beijos pra todos os cachorros e gatos do caminho.
Não tenho medo do ridículo.
Eu sou aquela que anda à noite pelas ruas sem medo, pois sei que nem em ambientes com vigilância estamos seguros. Eu não tenho medo do outro que cruza meu caminho, perdido na rua. 
Tenho medo dos perdidos da vida.
E de me tornar um deles.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Guarda-chuva

Queria um guarda-chuva transparente pra te ver chegar como chuva inesperada. Aquelas que vêm no outono, sabe? Então, você. Folha amarelando, flor despetalando, vento mudando o sentido das árvores...

Essas meias-estações dão a impressão de que algo vai obrigatoriamente acontecer quando a estação inteira chegar. De que outras metades irão se somar a essa nossa incompletude existencial. De que meias-intenções vão evoluir para vontades. Achamos que o vazio é sazonal, mas logo vem mais um ciclo pra reorganizar nossas faltas.

E tão repentinamente quanto o outono se transformou em inverno, veio o sentimento mais rebuliçante de todos. Amar parecia ser tocado por algo que não podia ser sentido. Como se uma mão invisível segurasse meu coração e o ajudasse a bater no ritmo.

As meias-estações viram estações inteiras e nem por isso somam-se partes, raras vezes multiplicam. Que nem eu e você.

Ficarei, eu sei, em desarmonia rítmica quando o inverno acabar, mas logo na primavera outras formas de estar inteira florescerão. Sem meia-estação ou meia-intenção, só eu e as minhas outras metades, germinando em mim.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Vacas magras

A cama vazia.
Roubaram as borboletas do meu estômago. Vazio há nem sei quanto tempo mais.
Pra falar a verdade, não. Não acho que vai ficar tudo bem.
Não acho que alguma coisa vai acontecer pra mudar a sorte que eu tento transformar todos os dias.

E quer saber? Não vou deixar levarem de mim o que chamam de pessimismo. Antes fosse.
Só eu sei dos meus azares, das minhas perdas, dos meus cabelos brancos e eles são tudo do pouco que eu tenho. Se você acha que é pessimismo, pegue todo o seu otimismo, todos os seus sonhos de morar em Londres e venha viver a minha vida. Por um dia.
Te ofereceria um rivotril, mas também não tenho pra dar. Infelizmente nem pra consumir.

Exagero? Pra quem nunca faltou o que pôr no prato ou se preocupou como garantir um teto, pode até ser, pois esse tipo de realidade não existe pra você. Consciência social, dizem, mas ninguém quer a ciência, o empirismo de viver na miséria. Hoje é preciso que um gráfico apareça no jornal nacional para que as pessoas vejam o que está sentado bem ao lado delas ou na frente de seus carros no farol.

Ninguém quer ter que aceitar doação ou caridade. Ninguém quer dó, mas ultimamente é só o que temos pra consumir.

Crise? Só pra quem tinha alguma coisa. Pra quem vive de quase nada uma vida inteira, esse é só mais um buraco que vamos ter que fazer no cinto. Vacas magras.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Formiga (parte 1)

Buscava nos sonhos respostas que só poderiam vir na superfície. O despertador tentou me avisar da hora, mas eu só torcia para que as vibrações do coração chamassem mais atenção que as do celular e que eu não desadormecesse.
 
A força imensa dos possíveis encontros veio, então, me acordar.
Trouxe a sensação de algo que ainda esperava para ser vivido.
Coloquei minha blusa amarela favorita.

Andei como quem se prepara para receber um prêmio.
Peito pra frente, medo pra trás e nariz em pé.
Tropecei.

Meu coração formigava. Vibrações de paixões adormecidas, como pequenas formigas, percorriam meu peito e iam subindo à garganta, até chegarem ao cume. Lá, os comandos de ações têm estado em desordem. Do avesso. Mas não era esse o caso. O caso era o caso que viria.

Continuei andando com a certeza de que ainda existiriam tonturas em primeiros beijos.
Achava que os melhores primeiros beijos eram os dados em bocas conhecidas.
Como quando beijei a Nina pela primeira depois da derrota terrível do Brasil na Copa. Mas o caso não é a Nina. O caso era o caso que viria.

Cruzei um olhar. Pensei: será que é esse? Parei para ver as movimentações que a natureza faz no outono e pensei que o que o amor faz é diferente nos corpos em que habita. Seu poder de transformação cresce quanto mais ficamos parados no mesmo lugar. O que vinha se provando extremamente perigoso.

Parar ou seguir? Não sabia. De repente uma maré ácida de desespero trouxe à tona todos os meus medos sociais. Morreria sozinho?
Então, ela surgiu.

(Continua - segunda parte: Cigarra - http://giuliagambassi.blogspot.com.br/2015/06/cigarra-parte-2.html).





quarta-feira, 17 de junho de 2015

Ah, cara

Ah, cara, eu poderia te amar tanto.
E sei que você me amaria também. Cada um do seu jeito.

Mas talvez você faça parte dos tipos de gente que gosta de falar de amor, mas não de vivê-lo.
Das gentes que adoram ler, ouvir, cantar, escrever, resenhar, gritar o amor, mas que não querem amar.

O que me irrita é essa contradição. Você pode sentir o amor, mas não quer exercer esse sentimento, não quer exauri-lo em todas as suas formas disformes.

O mais absurdo é que a gente podia se amar muito e até dar outro nome pro sentimento louco que iria surgir. Mas você se esconde no silêncio, atrás de pessoas que te feriram e do passado que já passou. Se disfarça na frente de uma pose de descolado, de entendedor do mundo, de vivente de gentes. Mas o que é viver sem sentir? Como se vive alguém sem sentir alguém (mesmo que na imaginação)?

As reais fronteiras a serem desbravadas são as fronteiras das pessoas. E nem precisa pegar estrada.

Ah, cara... A verdade é que eu quero ser acompanhada.
Nunca gostei de jogar nada sozinha, quem dirá jogar a vida fora na solidão.


segunda-feira, 15 de junho de 2015

Sobre atalhos

Pessoas que escolhem sempre o caminho mais curto me incomodam. Que evitam a entrega por medo. Talvez por ressaltarem em mim o desejo de resolver tudo da maneira mais fácil possível. De evitar sofrimentos "desnecessários". Ah, mas que tolice. Somos constituídos e constituintes de cada esforço, cada erro, cada dúvida e decepção.

Ainda acredito que devemos aceitar e entender cada conflito que cruza nosso caminho. Por mais que doa e que não seja fácil.

Procuramos o nosso espelho em um olhar que não é o nosso. Por quê? Talvez porque procuramos aceitação, por estarmos viciados desde a infância a sermos afirmados e legitimados por pessoas em nosso exterior. Muitas vezes não vemos que o primeiro olhar que temos que procurar em nosso espelho é o nosso, não o do outro.

E quando chegar a hora, quando estivermos prontos para sermos nós mesmos, para encontrarmos alguém que não seja o nosso espelho, mas que abra espaço para que possamos deixar transparecer todos os nossos defeitos, falhas, obsessões e amor...
Nesse momento, nesse dia, nesse "pelo resto dos dias do nosso amor", eu não vou querer o atalho. Que venham as lombadas, os buracos, as subidas que ardem a coxa, os declives e as paradinhas no acostamento para simplesmente sorrir e transbordar amor. Que venha o olhar pra quem possamos, a cada piscada, fazer um convite: "vem comigo?".

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Hoje

As noites têm sido tão lindas ultimamente, mas me parecem desperdiçadas quando não posso falar sobre elas com você.
E as minhas risadas pareciam mais sonoras quando você fazia coro a elas. Não deixo de dá-las, mas elas parecem incompletas, secas, mangas verdes no pé.

Não me interessa mais saber se eu entendi tudo errado ou se você que mandou sinais como se não fossem ser interpretados. Não importa mais de quem é a culpa dessa confusão.

Eu te mandei ir, eu sei, mas eu não sabia que não estava pronta.
Acho que prefiro seu incômodo ao seu silêncio.
Não posso te pedir pra voltar, pois você nunca ficou para ter ido embora.
Mas, hoje, queria aproveitar esse desapego ao meu ego, esse clima confessional e sussurrar (bem baixinho): "fica?" .

quinta-feira, 11 de junho de 2015

No peito

Atordoante você.
Como uma lanterna na pupila do maçante, alucinante, pulverizante. Você.
Memórias incansáveis de nós.
Lacerando a minha carapuça de quem superou dores inesquecíveis e curou feridas irremediáveis.

Tempo de ir embora.
Que chegou e se foi e agora vem de novo, mostra que se eu ainda tenho que me lembrar de te esquecer é porque você ainda vive em mim, de alguma forma torta e torturadora.

Ah esse tempo que não tem tempo de cumprir seu papel. Me sacaneia.
A cada renovação de neurônios ainda percebo conexões a você.

Ah se coração falasse e saudade matasse, o mundo teria mais histórias do que bocas para contá-las.
A minha boca do peito ainda canta teu nome, mas virão outros nomes, outras dores, outros você.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Caminhos

Explosão solar. Abriu caminho pra eu te encontrar.
Entre teorias evolutivas, reencarnações e todo o tempo do mundo, uma hora um pensamento se fez.
Comum de dois entre dois milhões, eu e você.

Andamos muito até chegarmos um ao outro. E foi o encontro dos encontros.

Mas mal sabia o sol que, quando explodiu, abriu vários caminhos e outros também chegaram a você e a mim. E chegarão.
Outros pensamentos serão forjados, criados, reinventados, ou ficarão alojados na memória, competindo com o presente.

Já vivemos outros encontros dos encontros, mas esse é o que escolhemos pra repetir várias vezes pela vida.

Pra mim, encontrar você foi como andar entre a natureza.
É que eu adoro passar embaixo de árvores com a copa bem cheia e baixa, e achar um espaço entre os galhos com a minha altura. É como se aquela árvore fosse meu encaixe na natureza. Como se me deixasse passar, como se abrisse caminho para o meu desvio. Você, árvore, e eu, desvio.

Que a sua árvore e a minha enraízem, fazendo sombra em nosso caminho quando a luz do sol estalar nossos medos.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Sequestro

Queria escrever sobre utilidades, mas gosto mesmo é de juntar palavras sobre o amor e quase histórias reais.
Queria falar sobre acontecimentos importantes, históricos, mas só me sobram dizeres sobre vivências.
E quando arrisco uma fala inteligente, o emocional toma conta e encobre qualquer pensamento ultra-racionalizado.

É que tem gente que sequestra nossa atenção. Rouba nossos hábitos e intenções.
Transborda em qualquer ação ou tentativa de voltar a ser o que era, porque quando estamos encantados esquecemos de colocar máscaras ou fingir emoções: somos o que sobra de verdade.

Ah, os sequestros a coração armado.

domingo, 7 de junho de 2015

Procura-se

Procura-se alma que queira amar descomplicadamente.
Que não fique quantificando ou poetizando o amor, permitindo que ele seja o tanto de poesia que transpirar.
Que se entregue, sem medo de se machucar, mas com gana de ver até onde o coração pode ir.
Que não fique preso às formas do corpo, mas às formas com que podemos usá-lo para amar.

Não quero uma história que tenha tudo para dar certo, quero uma história que se dê. Completamente.
Que não se importe com qual é o rumo da minha vida, mas com como eu estou me sentindo agora.
Que não queira contar de seus carimbos no passaporte, mas quantas vezes passou pelo mesmo caminho e, ainda assim, viu beleza e se apaixonou.

Que goste de jazz, mas que também dance Karol Conká.
Além de tudo isso, alguém que queira ficar, mesmo que vá embora.
Afinal, são as vontades que movem o mundo.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Batida

Bateu. Bem de frente. De cara. Na cara.

Era como se viesse o choro, mas não a coragem de chorar.
Como se os lugares não coubessem ela. Era descabimento demais.

Como se precisasse dormir, mas não conseguisse ir para casa.
Como se os pés queimassem em plena sombra, plantados no ar.

Tinha medo. Medo de sentir o que estava sentindo, de dar existência a tudo aquilo que faltava.
Desistência inexistente que se encaixava em todo lugar.

Aqui e lá ainda sentia algo, algum desejo de mudar.
Procurava sinais de que havia uma missão a ser cumprida. Comprida.

Então revelou-se: sossego. Até a próxima batida.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Thriller

O susto dos sustos chegava, despercebido, sem razão lógica, sem explicação.
O sutiã abriu sozinho no meio da rua.
Fazia tempo que sentia que os objetos já não eram mais inanimados.
Era como se assistisse a um desenho em que ela não estivesse no corpo, mas o corpo estivesse nela.

Saiu, coração a mil, era corrida por suas pernas, era atingida pelos seus pensamentos, era sentida pelo seu coração.

Pensou em pedir ajuda, mas o que alegaria?
"Doutor, meu corpo declarou independência". Internação na certa.

É como se as borboletas que a habitam tivessem injetado heroína. E nem tinha heroína da história.
Chegava a quase sair do chão, mas a gravidade a prendia ali. Nada de Newtoniano, mas a gravidade que dava aos fatos desagradáveis da vida a mantinha fixa no mesmo lugar, mesmo que personagens diversos passassem.

E como um bom filme de ficção científica, inclinado a ser classificado como terror mal feito, chegava ao fim sem fim. Só uma tomada externa, fora dela, onde era possível um final feliz.