quinta-feira, 9 de abril de 2020

dia 23 - ou a tautologia do impossível

Reparei hoje até onde meus cabelos brancos estão chegando. Já passam de mais da metade da circunferência da minha cabeça. Eu que muitas vezes me envenenei para escondê-los, acho graça.

Nesses dias de estranhamento e esvaziamento do espelho, a sensação de cansaço de olhar pra dentro se amplia para além dos quarenta minutos semanais de análise lacaniana – acho estranhíssimo isso do divã ser, agora, a minha cama. Sempre fui muito de presenças e tatos e cheiros. Agora não sei mais.

O tempo que não passa e voa permite cultivar afetos e cansar da própria comida. Ficar presa no entre da dicotomia da saudade de quem não vejo e da vontade de ficar em silêncio. Não temos silêncio no isolamento. Mesmo sem filhos, sem gatos e cachorros, fico com meus pensamentos e o barulho dos carrinhos de compras do supermercado ao lado de casa.

E que vontade de ir correndo abraçar e beijar meus irmãos e amigos contraposta ao cansaço e ao esgotamento energético desse cenário (im)possível. Seria bom o vazio. Sem notícias, sem absurdos presidenciais e neoliberais (não necessariamente nessa ordem), sem desabafos disfarçados de piadas torpes sobre o fim do mundo. Mas aí lembro do vazio de dentro, a tal da falta angustiante, e quero o inexistente cheio. Fico com o nem meio cheio e nem meio vazio. Fico comigo.

Reparei hoje nos meus cabelos brancos e pensei que causarão espanto nas pessoas que não me veem há algum tempo, pois eles já se espalharam para terras jamais d'antes vistas. Antes se escondiam no risco do cabelo logo antes da divisão desleixada que faço em minha franja. Não mais.

Pensei no espanto dos outros e logo em seguida atinei que talvez ninguém nem repare.  Não por desinteresse, mas porque penso que será preciso nos conhecermos de novo. Nos reconhecer no outro que virou foto estática ou representação 2D. Reestabelecer ou reforçar os laços, a troca, a união – acho que talvez eu seja analógica demais para tempos de pandemia. 

Ainda duvido dessa reforma moral e social propiciada pela crise do codvid-19, com mais consciência social e de classe acompanhada pela vontade de, se não lutar, ao menos apoiar a dignidade humana – acho que talvez eu seja crítica demais para tempos de distopia. Mas ficaremos tanto tempo sem saber o tempo que precisaremos ficar sem amar corpo a corpo nossos amados que vamos precisar de segundos encontros para nos reconhecermos novamente. E nessa tautologia do impossível, meus cabelos são o de menos.