domingo, 31 de maio de 2015

A âncora

Embarcação perdida em uma tempestade solar. Pairava desvairada entre os tons do vento.
Livre prisioneira a navegar águas atormentadas.

Eram azuis e graves os redemoinhos que a rodeavam, mas logo viria a estiagem, aguda e púrpura nas lentes de seus óculos.

Sopro no deserto de um oásis lacrimal. Tornado.
Olhou para o céu. Chovia sentir.

E veio lhe buscar, veio lhe levar, como ondas do existir. Mas logo avistou uma borda e se agarrou a ela.
Jogou a âncora e a morte abrandou. Buscaria a próxima embarcação.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Acumuladores

Engraçado como vemos as pessoas boas que passam por nossas vidas como algo que tem que ficar. Mas, quando a vida toma seu rumo natural, elas são substituídas por "porquês" e culpas.

Acumulamos culpas e pessoas para recebê-las.
Acumulamos tantas coisas que acreditamos que os nossos erros, nunca os acertos, são lembrados por todos. E quando o que nos resta é reputação e boa intenção, não temos nada. Em absoluto.

As más experiências conseguem passar, são as pessoas que as eternizam, não conseguindo deixá-las virar passado. Fazer um culto à memória do que foi quebrado não vai fazer você mais ou menos frágil.

Mergulhados em uma avalanche de clichês, alocaremos a zona de perigo na fase em que estamos vivendo não no eu que estamos sendo. É aí que mora o perigo.

Acumuladores guardam, em cada lembrança do que passou, um emaranhado de culpas que vai se multiplicando e tomando lugar das reflexões que temos que fazer de nós mesmos.

Você tem ou é?

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Bandeja

Ultimamente estava pensando muito sobre o poder que damos aos outros.
Entregamos de bandeja o que de mais valia temos. O poder do outro sobre a gente.
Poder esse criado por nós. Pode?

Tinha a vida resumida cinco vezes por semana por, pelo menos, sete vozes diferentes. E contava-a pra todo mundo, querendo que chegasse a uma pessoa. Imagem à distância. Compartilhava.

Diálogo monológico do sentir. Não era pra fazer sentido.
Cuidado! Será momentaneamente responsável pelo que cria em sua mente.

E ainda achava cativante isso de estar só. Cativava a vontade de não estar mais.
Mas com alguém que fosse bom o suficiente. Sof(r)ista?


Incapaz de completar qualquer tarefa devido a alta fertilidade.
A inevitabilidade dos prazos fazia com que houvesse produções quase abortivas.


Sensível ao estímulo, porém cega em deslumbramento e em descontentamento.
Se abria para conhecer o mundo que só teria uma bela surra pra oferecer.
Mas era bela.

Episódio


Não é você. Nem eu.
E nem chegou o começo. Não tinha eco para merecer fim.
Foi um ponto.

Bateu a porta atrás de todas as partidas.
Ficando a imensidão das vozes que acreditava dizerem algo e eu.
Sussurro do que queria ouvir.

Mas não era eu. Não era o seu eu.

Não tinha ator, tinha multiplicador. Era estranho a isso.
Precisava enfiar os pés na areia e ser puxada pelo mar para ter estado lá.
Não bastava pra isso.

Amorcêntrico, mesmo que a tendência fosse o amorlivre.
Desmedidamente aplicava denominador comum dois.

O corpo era gaiola do eu. A mente tinha a chave do nós.
No que estaria pensando agora? Liberdade.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

A caminho do abissal

Sal. Boca seca. Saía do meio do mar, resgatada.

Tinha ido fundo demais, despressurizando a razão.
Lembrou que, enquanto descia, não se afogava, mas sorria. Olhando para a solidão azul e clara que se afastava enquanto percorria o caminho ao abissal em velocidade máxima, com o peso de seus fardos, amarrados aos pés, ajudando a descer.

Nos últimos momentos de consciência, refletiram as memórias que não conseguia mais alcançar. Da vida fora do mar, onde a alegria era úmida, mas mais seca que molhada.

Estava encharcada por dentro. Àquela altura, era mais sal do que água. Apagou. Mas alguém a puxou.
Voltou como se estivesse fora do corpo, via pelos olhos de outro alguém a tentativa de reanimá-la. .

Cuspiu água e viu, quem a resgatava, era ela mesma vestida de alegria.
Ainda havia duas dela.

Havia naufragado, mas o corpo abriga muitas moradas.
Enquanto retornava a si, viu a outra dela buscando mais uma, outra das duas e revivendo-a.
Olhou em direção ao mar e viu outros corpos se preparando para a descida. Não era hora de sepultar as dores ou transferir culpas.
Correu em direção à água e tirou outra de si de lá. Deixando os fardos a que se havia prendido afundarem. Aos poucos, foram trazendo uma a outra de volta à vida.

Dessalgando as postas da vivência, salvava-se.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Opaca

Embaraçada, trazia anseios infalíveis. Tinha acordado seca.
Densa, mas permeável.

Era delírio e execução, pagamento penal de algo natural. Vulcão.
Canalizado dentro da pele, aflorando em arrepio.

Ferida aberta.
Eram intensas as incisivas que projetava nas suas palavras.
Em nossas conversas monológicas, era apaixonante.

Potencialmente covarde e infinitamente poderosa.
Quando cicatrizava conhecia fim, pelo menos onde morava.

Opaca. Vaporosamente etérea.
Vontade.


sábado, 16 de maio de 2015

O dia em que a Maria parou de se explicar

Todo dia a Maria fazia coisas diferentes, ou se fizesse as mesmas coisas, procurava fazê-las de maneira diferente. Tinha paúra da rotina e de se tornar mais uma. Morria de medo de virar a moça daquela música do Chico. Pena que não percebeu que tentar fugir do comum hoje é tendência.

Toda vez que pensava em fazer algo fora da curva, pensava em tudo o que ia ter explicar pros outros e em como ia frustrar as expectativas deles (que ela tomava como suas por algum padrão social ou alguma coisa que sua mãe disse quando era pequenininha, como "senta que nem mocinha"). Normal (?). E mesmo quando ela resolvia desviar um pouco do caminho inédito (tendo a audácia de controlar a própria vida), mas totalmente previsível (que nem o Missão Impossível 5) se preparava para explicar o que toda gente queria saber.

E todas as vezes em que ia se explicar, preocupava-se em ser didática e, antes de dormir, listava os motivos que a tinham levado até onde estava. Tinha uma metodologia para, pelo menos, terminar a argumentação com os outros sobre sua própria vida de uma maneira que não fosse incômoda para quem perguntava, mas que devastava um pouquinho de seus sonhos todos os dias. Ter que se justificar para fazer sentido no mundo era um autoflagelo incentivado pelo social. Crime de guerra existencial.

Depois de mais um diálogo em que o outro saía vitorioso, sabendo mais do que era melhor pra ela do que ela mesma, estava exausta. Cansada de viver tudo aquilo e de se forçar a tal. Aí Maria percebeu que quanto mais ela explicava, menos entendiam. Quanto mais ela explicava, menos sentido sua vida fazia para si mesma. Tudo que se racionaliza demais perde a lógica natural, estrutural.

Colocou a culpa no vinho por todos aqueles sentimentos e pensamentos. Achou que tinha bebido demais e dormiu. Mas a sociedade não podia esperar atividades cerebrais tão intensas durante o sono. Acordou decidida!

O dia em que Maria parou de se explicar foi libertador. Não tinha que explicar o porquê de querer comer brigadeiro ou o porquê gostava da Dilma. Não tinha que se bastar em ser algo marcado pela definição. Percebeu que ela poderia ser Maria ou Mario, que ela poderia ser ele ou ele(a). Ela amava parênteses! Que ela poderia fazer algo que não desse dinheiro, mas que capitalizasse pensamentos. Que ela era tudo o que coubesse dentro dela e que se ela resolvesse dar um passo atrás ou pro lado, pouco importava a aprovação social.

Dentro dela tudo estava sendo avaliado o tempo todo e se ela achasse que tinha que explicar algo a si mesma, era a ela e somente a ela que devia explicações. E quem quisesse entender, entenderia mesmo sem que ela tivesse que ganhar um pulitzer com seu discurso.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Túnel pro litoral

Fiquei encantado. Não foi à primeira vista, nem mesmo nos primeiros minutos de conversa.
Parecia que você tinha que deixar abrir uma fresta pra que eu pudesse te ver. Não por inteiro, mas um traço, pelo menos, que fosse verdadeiro. E vi. Fiquei paralisado. E logo pensei: será?

Pela primeira vez eu pedi calma. E fomos. Exercendo o risco de se deixar ser preso pelo amor de alguém. Mas não que fosse prisão, era mais um enlaçamento. Encantamento. Aquele momento libertador quando você não procura mais em outros o que agora consegue ver bem na sua frente. Parece coisa de louco, mas era só um dos tipos de amor.

Fomos. Sem possuir, sem controlar, sem enciumar. Mas eu fui mais que você. Afinal, esses caminhos tortos dos espelhos que colocamos nos outros, acabam sempre com alguém dando um(ns) passo(s) a mais. Mesmo assim eu não me importava. Voltava, sem trilha de pão, sempre que sentia que queria te buscar.

Então, chegou a hora. Não sei dizer se de noite ou de dia, pois a mente estava atrapalhada demais pra perceber fuso horário. Percebi que tentar me prender ao que construí de você era como segurar a respiração num túnel à caminho do litoral. Uma aposta comigo mesmo, puramente inútil. E por mais que tentasse não respirar, sabia que se aproximava, na próxima curva, o momento em que ia ter que dar um profundo suspiro e depois te deixar passar, como ar quente.

É que eu queria ser sorte pra trombar você, sem que precisasse vestir medos e máscaras. Só um biquíni confortável e um pouco de filtro solar.
É que eu queria ter sorte pra você ser o que realmente é. Mas talvez isso fosse azar. Não sei. Cheguei a(o)mar.

sábado, 9 de maio de 2015

Do ridículo

Como era ridículo. Dava vergonha só de lembrar.
Do cabaré que o coração fazia pra exibir sua intenção.

Como era fácil. Dava vergonha só de pensar.
Em como é descomplicado e intuitivo submeter o corpo às vontades rasas do coração.

Como era real. Dava vergonha só de sentir.
As transmissões de pensamento que mudavam o cosmos por puro prazer.

Era questão de tesão intelectual que vazou entre as pernas.
E percebia que o ridículo rejuvenesce de dentro pra fora. Das entranhas pulsantes ao coração pululante.

Mas era intenso. Se abrisse espaço pra muita reflexão, ele ficava tímido e sumia.
A lei áurea do ridículo é a ausência.
Nada que um shot de paixão não resolvesse, embrulhando a alma pra viagem e embebedando o coração. Que coração?

O ridículo existe à toa. Por nada. E domina completamente até o mais polido bom senso.
Cuidado com os fósforos! O ridículo é inflamável.
E dava vontade de (ar)riscar. Esganando o senso.
Senso de ridículo.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Intimidade forjada

Invocava o amor com a força de seis ciganas e quatro leitoras de tarô.
Forçava o desejo e cravava o corpo na intenção do outro como se jogasse búzios.
Eram inúmeras as encruzilhadas e nem me deixe começar a falar da projeção astral - afinal, hoje, projetar é amar em modo narcísico.

Insuportavelmente via o desejo distorcer distâncias e alongar (por demais) situações que nasceram e morreram pontuais. Era um baile dos mortos pela vivência de uma ilusão. Um carnaval com mais cinzas do que dias de duração.

Forjar intimidade - via isso se repetir por todo lugar. Estávamos todos viciados em ver potencial no outro de algo que nem nós poderíamos oferecer.
E na verdade o desejo trocava de pele. De tempos em tempos mudava a carne e preenchia outros olhares.

Não queria forçar nada, mas se pegava com o fórceps na mão. Sua intenção era um crime irremediável.

E ainda torcia para que viesse à luz o amor abrangente, livre... em sua dilatação naturalíssima do impossível.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Raso

Olhando de cima, não dava pra ver a profundidade. Resolveu testar a temperatura da água, como quem não quer tudo, e se deparou com o fundo nada fundo.

Era raso.
Gente rasa não se preocupa, não faz promessas.
Gente rasa vaza antes de que se chegue ao fim.

Não dá pra entrar de cabeça em gente rasa. É impossível mergulhar onde só cabem os pés - a não ser que procure um amor paraplégico.

Não enfiam os pés pelas mãos. Cada parte do seu corpo está onde (não) deveria. Sem atrevimento, com boia no braço.

Gente rasa não tem medo de se afogar. E sem medo não há coragem.
Gente rasa precisa de pirotecnia no sexo e não cria intimidade: tem que ir muito fundo pra ser íntimo. E lá, às vezes não tem luz. Gente rasa tem medo do escuro.

Mas gentes rasas também amam e são amáveis. Cativam e são cativadas. Dão risada. Fazem piada. E se apaixonam.
A única questão é: quão fundo você quer ir?

domingo, 3 de maio de 2015

Tempestade

Olhava atentamente para a tempestade que se formava no copo d'água.
Com a cabeça apoiada sobre uma mesa de madeira escura, via as gotas se transformarem em vozes de cada problema, medo e questão.

Caminhava para encontrar cada parte sua em partes outras que o caminho pudesse entregar. Se sentia pronta para aceitar tudo aquilo.
Quem sabe um dia conseguiria deixar aquela parte, que segurava, costurava e colava para não cair, pra outro caminho carregar...

Temos que estar sempre prontos para receber, para agradecer e para despedir. Mas a obrigatoriedade torna o ato falho.
Há mais encontro na despedida que o adeus propriamente dito.

E ainda havia a necessidade de entender. Exercício que a cada dia, quanto mais entendia, menos parecia compreender. Tentava entender por quê precisava entender tantas coisas.

Gole por gole foi vendo a tempestade passar e engolindo o que estava preso na garganta.
E assim foi... até que a tempestade passasse e outra chegasse. Chegou? Garçom, traz mais uma.