domingo, 22 de maio de 2016

Abandono

Eu te espero voltar.
Como a mãe que espera não só o pródigo, como o cão que espera não só o mestre e como o filho que pode ser tanto aquele que ainda não sabe que a mãe não o abandonará, como aquele que ainda não conseguiu entender que ela o abandonou.

Ah, se fosse mais um caso de coração partido por um parceiro romântico, um pouco de tempo e brigadeiro talvez resolveria. Ou se fosse um caso de desordem familiar, talvez alguns anos de terapia ajudariam. Mas não estamos falando do clichê.

O abandono de que falo não fui eu que sofri, mas também o sinto. E além dos animais, das crianças e dos idosos, passivos desse horrendo verbo transitivo, que apesar de pedir complemento, escolhe deixá-lo para lá, existe também o abandonado ativo: que abandona a si. Assisti-lo dói e faz a gente querer acolher, assim como o animal, a criança, o idoso. Mas quando falamos de um abandono de si, aquele que abandona e o que é abandonado repousam no mesmo corpo e é só esse corpo que pode readmitir o encontro, o acolhimento.

Quando você resolver voltar, quando desistir de desistir de si, estarei aqui, além desse tempo em que você se abandonou e saiu por aí. Continuo aqui.
Eu ainda espero poder te ver voltar e peço que volte logo, porque eu sei que você se sente falta. Eu também.

sábado, 21 de maio de 2016

Vidas

Há vidas que têm dificuldade de permanecer em constante laço com o chão. Preferem o atrito dos amores, das dores, das nuvens. Não se perdem, pois não tem como objetivo encontrar-se. Voam e vivem, mas sofrem quando precisam pousar. Afinal, as relações acontecem quando os corpos tocam a terra, mas se eternizam na etereidade dos sonhadores.

Há vidas em que não importa ter onde morar, se se é proprietário das vontades que se acredita ter. A elas fica a ilusão-verdade de serem donas de si.

Há vidas que têm que lutar para viver. E não é na gravata, no que se considera trabalho, na renda. É na resistência de suas células, de suas almas ao que o mundo tem para oferecer.

Há vidas que não querem ser vividas e passam despercebidas pelos olhos do tempo. Outras que se aprisionam em seu próprio querer e definham, lentamente, na vontade de ser o que não desejam.

Que vida vivemos?

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Deixe

Deixe o cabelo desgrenhar, a barba crescer, as noites passarem mal dormidas.
Não se depile. Deixe suas células e seus pelos sem cortes, sem aparas.
Cresça inteiro de novo.

Tente se reconhecer.
Não sinta fome, perca a ideia que tinha de quem você era.
Perca horas olhando pro teto. Dê a si o direito de não ser produtivo. Só seja qualquer coisa semiviva.

Atinja o lado baixo de si. Reconheça que está ali e respire.
Espere passar. Lute com tudo na sua cabeça que diz que não dá mais ou que quer voltar atrás.
Dê tempo para o tempo que não quer fluir.

Finalmente durma. E acorde.
Abra os olhos, mas cuidado com a claridade.

A selva que antes o ameaçava com predadores e plantas venenosas, aos poucos se abre em uma clareira. Ela teve o espaço de ser e agora vai ter espaço de abrir outros ciclos.

A intensa dor que sentia e impedia de pensar em qualquer coisa que não ela, vai anestesiando.
Ela pôde ser sentida em toda a sua intensidade e, aos poucos, perde sua função, sua pulsão.

Veja onde esteve, onde está e onde quer tentar.
Vá. Deixe seu cabelo, sua barba, seu pelo, seus medos, como preocupação para tempos de recolhimento. Esse não é um deles. Não mais.

Vá e deixe. Se deixe. Ser.