quarta-feira, 27 de abril de 2016

Fronteira

Há dias não durmo. Fico cansado durante dias e noites, mas quando os olhos fecham, encontram uma mente intranquila. As pálpebras ganham mais e mais peso enquanto minhas calças se alargam ao meu entorno. E mesmo meu corpo mostrando ser imperioso o descanso, ele me trai em desejos e lembranças que constrangem e doem demais para serem desligados.

Deparo-me com uma visão de mim como terreno neutro. Nem guerra, nem paz. Nem dor, nem conforto. Plácido e revolto, meu rosto, palidamente corado, não desenha começo ou fim. Refém de ocupações que a ele pertencem.

Fumante passivo. Monumento que se torna paisagem, não atraindo olhares, mas estando presente no campo visual de todos que passam. Contenho sentidos provisórios que dependem do olhar do outro para existirem, mas que só são sentidos em mim.

Uma imagem nítida de meu corpo como um território de fronteira me amedronta, persegue e faz-me desviar do caminho. Perco-me em rotas familiares. Linhas imaginárias me atravessam, trópicos sem equador me tornam tórrido.

Fronteira: nem cá, nem lá, mas entre. Ponto de apoio político para apátridas, demarcador cultural para amnésia, porto (in)seguro para refugiados.

Há dias não durmo. Mas sigo marcando espaços, fazendo laços entre territórios que não querem, mas precisam estar ligados. Mesmo cansado, sinto que, de qualquer forma torta, abrigo uma revolução.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

A solidez dos relacionamentos líquidos


Então, de uma ideia que tenta transmitir certa liberdade, a liquidez dos relacionamentos se tornou obrigatória. Entre amigos e amores, as palavras de ordem são “liquidez”, “amor livre”, “encontrar-se” (perdendo-se em mil outros corpos), “viver o momento” etc. Não que haja um problema em viver e se relacionar dessa forma, mas ela se tornou mandatória. Quase não há escapatória dessa maneira “inovadora”, mas pré-moldada, de se relacionar.

Se você descobre que, na verdade, prefere não ficar com várias pessoas, que não se sente bem numa liquidez em que o cuidado e o carinho escapam pelos dedos, você está atrelado a uma ideia de pertença e domínio que é retrógrada. Porém, escapa de alguns que não é o fato de não se sentir à vontade com um relacionamento aberto que as cobranças serão feitas de uma maneira mais intensa ou que até existirão. Toda obrigação prende a gente, mas ela pode estar presente tanto em alguns relacionamentos "tradicionais" quanto no fato de necessariamente precisarmos nos relacionar dessa maneira "livre".

Falta um senso de responsabilidade ao se relacionar com o outro. Responsabilidade pelo que causamos e pelo que queremos. Pelo que causamos por acharmos que o outro se enganou sozinho, que construiu expectativas sozinho, ou até que errou sozinho. Não, em um relacionamento nada acontece sozinho, nem o erro, nem o acerto. Já a responsabilidade pelo que queremos é assumirmos para nós mesmos o que procuramos, o que podemos oferecer e o que esperamos ter de volta. Posicionar-se e assumir o que desejamos implica eliminarmos possibilidades de relacionamento com pessoas que poderiam nos proporcionar momentos muito bons, mas que só seriam bons até determinado ponto, virando o avesso disso a partir do momento em que percebemos estar fingindo ser algo que não somos para cativar a atenção dos outros.

Acredito que a liquidez está tão em voga que hoje parece estar sólida. Se tornou um obstáculo para o que poderia acontecer de forma natural, mas que encontra uma barreira por ter que respeitar a liquidez do outro, que agora não pode querer se envolver de maneira mais profunda, e até se propõe ser líquido só para tentar conquistar alguém. A monogamia não está na moda, a tendência é ser plural, mas as tendências não deveriam ditar comportamentos, mas ser reflexo de determinado grupo. Sempre podem (e devem) haver exceções.

É praticamente intransponível o limite imposto por alguns relacionamentos descomprometidos e líquidos. Ficamos presos fora ou dentro deles e essa liquidez se transforma em um muro, colocado entre uma possível ponte entre o eu e o outro, barrando uma conexão que consiga vencer os vapores do que se entende por liberdade, mas que aprisiona os corações, por vezes no lado raso das relações.

Nos levamos tão a sério que o que era sólido e poderia derreter, hoje é líquido e tende a se solidificar e tornar fronteira entre o que é esperado e cultivado pela sociedade e o que somos e queremos com todo o coração.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Primeiro de abril

Foi no dia 31 de março de um ano bissexto que comecei a amar você. Fiquei preocupado de descobrir no dia seguinte que era mentira. De acordar enviesado e me irritar com um pedaço de você que ainda não conhecia bem. Ainda ficava desconfortável com novidades.

Amanheci tranquilo, observando como meu humor evoluiria. E como meu amor por você evoluiria.
Fiquei em dúvida se toda essa pressão alteraria algo, mas logo lembrei que se fosse pra ser, nada atrapalharia.

Na hora do almoço me senti um pouco sufocado pelo peso da sua presença na minha vida, ao ver uma outra moça bonita e não ter vontade de falar com ela, como teria no dia 29 ou 30.
O que aconteceu foi que o amor evoluiu, nada atrapalhou e não tinha mais "se" no era pra ser. Simplesmente era.

Foi no dia primeiro de abril que a mentira mais verdadeira da humanidade contou sua história e se inscreveu na minha: o amor.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Jaula

O que podemos fazer um ao outro sempre me encantou.
A mão no rosto para conforto, o gesto da criança fazendo carinho, o abraço tímido de duas pessoas que se descobrem par, o perdão entre pais e filhos, o sim.
O preparo de uma refeição para a partilha, o choro solidário, a parceria na hora de lutar e até o incentivo de um desconhecido que ouve verdadeiramente sua história e dedica toda a energia de seu coração para desejar que você seja feliz, sem vínculos.

Porém, o que mais me surpreende é quanto podemos nos desligar desse laço de afeto humano para fazer algo só por nós mesmos. E vamos em um egoísmo tão cego que, depois de derrubarmos todos ao nosso redor, só resta nosso corpo, que, no fim, também precisa cair. Chegamos a precisar vencer a nós mesmos. E nem notamos que somos o inimigo, desde o início.

Assusta-me o quanto ainda reverbera uma suposta superioridade sobre os outros, sobre os animais, sobre a natureza. O quanto emerge em alguns um sentimento de competição e de "mais saber" que supera qualquer tentativa de amar e respeitar o outro. É nessas horas que suspeito que o eu é maior e mais forte que o amor.

Seja em câmaras de tortura ou de deputados. Em amores nascidos ou abortados.
No dia a dia, na falta de empatia. No considerar o diferente invisível, em marginalizar uma vida que, assim como a sua, é vida.

Cada vez me sinto mais colada e ao mesmo tempo distante de tudo isso. É como estar solto dentro de uma jaula, que nós mesmos trancamos e jogamos a chave longe.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Estranho

Estranho como nos tornamos estranhos. Eu e você.
Do lugar em que eu te via, sentado do outro lado da mesa, você agora se apaga.
E, na imagem desse momento em minha memória, onde a minha mão segura a sua, começo a sentir um vazio: sua mão perde matéria enquanto você desaparece do meu afeto.
Do lugar de onde você sorria e em que meu sorriso, em sincronia e sintonia com o seu, se eternizava em um momento de ternura, mistura-se a partida e o desapontamento do fim.

Estranho como nos tornamos estranhos. Eu e eu.
Na injeção letal do tempo na vida, me sinto o êmbolo entre o líquido da juventude e o nada aéreo comprimido em ideias plásticas do que não temos mais, mas ainda buscamos, pressionamos.
Como o êmbolo, fico em meio ao presente e futuro, juventude e passado, num entre-lugar sem lugar. Sinto a pressão da mão que aplica a injeção na vida e que se faz na minha vontade, em quem eu sou e, logo, não posso mais ser ou vir-a-ser.

Estranho como somos estranhos e como isso é estranhamente normal.

domingo, 10 de abril de 2016

Linhas

Nas linhas de um texto outro, me perdi na lembrança de beijar cada pedaço do seu rosto repetidas vezes. Nem sei mais se criei a memória ou se ela realmente existiu. A cada dia que passa me distancio mais de você, da "gente".

Sei que esse é o caminho quando um relacionamento não dá certo: afastar-se.
Mas também sei que aceitar e repetir esse movimento é desistir de sermos dois. E isso dói.

Eu vou ficar bem sem você e você sem mim. Mas não precisaria. Poderíamos ter construído tanto... A verdade é que quando o coração não sincroniza minimamente, o melhor caminho é esse: separado.
Bifurcamos no que queremos e podemos oferecer ao outro e isso é irremediável. Caminho sem volta (?).

E não há mais previsão de nós. De contato, de encontro. E me incomoda o fato de termos que deixar para o destino marcar o nosso esbarro. Provavelmente acontecerá quando já tivermos esquecido tudo de importante um do outro e iremos passar quase como desconhecidos. A fratura exposta desse nós que não foi, já estará estabilizada com seus pinos, junto aos outros machucados que tivemos. Eu não queria ter ou ser fratura, mas também não poderia ser costura de outros pontos, esparadrapo.

Seu corpo começa a se apagar e o meu exige uma resposta.
Mas são linhas vazias de algo que não se diz, mas acena: adeus.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Olhar

Você me olha. E sou eu que me vejo.
Na carne fraca, na saudade sorrateira, no deixa pra amanhã que timidamente quer ser hoje.
Na sua incompreensão do meu desejo por espontaneidade. Que eu também não entendo. Mas preciso.

A saudade, ah, a saudade, vem galopante mostrar que, por mais a gente se sinta inteiro, não estamos completos. Podemos ser mais. Queremos ser mais.

E, quando queremos, transformamos o desejo em tantas outras coisas. Desenhamos uma história de nós dois em dias banais, em noites chuvosas e em tardes na biblioteca.
Também brincamos de metamorfosear a demora em recompensa, o depois em agora. Mas só quando a gente quer, com cada pedacinho do nosso corpo.

Porém, os meus e os seus medos se enfrentam e nem sempre existe um ganhador.
A gente deixa de amar pra ter razão. Pra ter controle. E perde, na ilusão do domínio de si, oportunidades de construir felicidade.

E a solidão, apesar de necessária, amarra nossos braços, fecha nossos olhos e poros pro amor.
Libertar-nos dela é uma missão auto-heroica. Para nos salvar do endurecimento do coração e do pretear dos sonhos.

Como em cimento fresco, rabiscamos impressões no outro, deixamos nossa marca e, quando paramos de cultivá-las, endurecem. Sobra a estaticidade do abandono na massa, que fica emoldurada nas calçadas de nosso tempo, de nossa memória, de nós.

Você me olha. E eu vejo.
Alguém, que como todos, tem medo, mas também tem uma vontade de amar maior do que tudo. Que não pode cimentar seu coração a espera de um herói, mas que tem que salvar-se, antes que o cimento seque.