quinta-feira, 31 de março de 2016

Borboletas

Mesmo sabendo que o pouco que tinham havia acabado e que o encontro era de ordem prática e não romântica, preparou o corpo e a alma para receber e dar amor. Ela sabia que iam só destrocar livros (trocados em um surto de compatibilidade intelectual e de interesses), mas, mesmo assim, arrumou-se com detalhes que ele já havia revelado desejar e valorizar. Um colar, uma peça de roupa branca (em sinal de paz) e um coração honestamente aberto. Correu para se olhar no espelho do banheiro quando ouviu o som da buzina e ensaiou um sorriso só para ver como ele a veria. Estava bem.

Controlou a velocidade dos passos para não chegar à porta tão rápido quanto o coração regia suas batidas e mais uma vez se perguntava por que se sentia assim, se sempre soube no fundo que nada seria ou sairia dali. A verdade é que ela poderia tê-lo amado muito mais, mas por já interpretar seus sinais, conseguiu segurar um pouco os prazos da expansão do amor. De certa maneira isso a entristecia. Amores que poderiam ser e não são. O fato de que as coisas podiam ser simples. Mas não são.

Girou a chave com cuidado e antes de tentar olhar em seus olhos no breu (precisava mesmo trocar aquela lâmpada), enquanto saía, tentou enfiar a chave na porta sem ver a fechadura, para livrar suas mãos. Caso ele conseguisse amá-la de volta, queria ter uma das mãos livres, já que a outra segurava os livros. Esqueceu-se dos bolsos (para as chaves) e da mágoa (para ele). Amassou os lábios como quem se prepara. Virou-se. Lembrava de olhos fechados o caminho de seu ombro até a nuca. E sentia falta. Mas o amor não calhou. Às vezes a gente não pode amar. Não consegue amar. Não quer amar.

Um abraço frio, um beijo no rosto sem quase toque. Já havia amado mais intensamente e sido rejeitada ou rejeitado de forma mais intensa ainda, mas aquela frieza marcou seus dedos no coração dela. E segurou-o durante a conversa (a)fiada de nadas, soltando-o só no fim do contato visual. Achava até que um pequeno pedaço havia necrosado.

Duas dúzias de palavras trocadas enquanto faziam o mesmo com os livros. Sem sentido ou necessidade, chegaram até a se repetir. Silêncio/adeus. Mais frio ainda. Um terço de abraço e um trisco de beijo. A porta da casa e a do carro fecharam quase sincronizadas.

Enquanto voltava para seu quarto, esboçando um não, com o semblante para o chão (sinal clássico da derrota do amor), pensava, novamente por que havia se colocado naquela situação. Pensou até em culpar o rapaz, decorrente do vício pós-moderno de se vitimizar. Afinal, ele que fez questão de escrever poema e envolvê-la. Mas ela também havia feito questão de tentar. 

E enquanto a construção social da mulher como louca a fazia questionar tudo o que tinha falado e sentido até então, resolveu ouvir a voz que tanto calam: não é preciso ter razão, mas assumir seus sentimentos com todo seu corpo, sem vergonha de seus pelos, poros e medos. Por sua sanidade, por uma possível felicidade, era imperativo deixá-los serem o que têm que ser. Aceitar que existem coisas que a gente não controla. Sensações, amor dos outros, borboletas. Outras, a gente pode deslocar, resignificar, amar. E não perde quem ama. Mas quem não consegue (se) amar.

terça-feira, 22 de março de 2016

Clareie

Tenho andado nua por aí. De mãos dadas comigo. Não que ninguém saiba, mas nem precisa ser de conhecimento público que tenho me sentido assim, unida, ao lado de mim. Não é algo que dê pra ver, mas alguns podem sentir.

Com olhos curiosos, acompanham meu corpo, parecem não saber o que tem aqui e tentam testemunhar, nem que por um fresta, minha pele exposta. Mas é só pra mim que, por vezes, revela-se. E só eu posso permitir seu reflexo para outro alguém.

Abraço-me, mas isso não impede que eu abra um espaço pra mais um entrar nesse laço comigo.
Entretanto, vejo que nem sempre o espaço que abrimos é preenchido por quem queiramos que estivesse lá.

E o processo de começar a estacar os lugares que vamos preservar das inundações do (a)mar dos outros exige decisão. Não é questão de querer apagar sua história, mas de respeitar a nossa. De lembrar daquela dor, daquele choro, daquela lição. Que nem sempre são pro outro o que pra gente foi.

Às vezes a gente tenta consertar em nosso coração as batidas que faltaram de um amor anterior. Mas evitemos estar presos à escuridão de remediações do passado. Deixemos o que não foi na nãosidão e permitamos um sorriso que diz sim para o futuro. Pra vida, pro outro, pra nós.

Por vezes nos fazemos presentes até debaixo d'água, mas também nos sequestramos dessa presença, não fazendo questão de estarmos lá. Essa desvontade afeta o outro, magoa, mas é como garoa fina: molha pouco e logo evapora. Como nossa estada nas águas de lá.

Também pode ocorrer de percebermos o amor por um incômodo. Quando o coração acelera de raiva. De insegurança. Mas esse pode não ser o tipo de amor que nós nos preparamos para viver em cada gesto de bondade, em cada delicadeza, em cada momento de acolhimento. É como um fungo que se apropria de nossas casas longe da luz e do calor. E podemos perder ou tomar o controle.

Fechemos os olhos juntos, então, para que os sonhos nus brilhem em um só.
Escolhamos para nossas vidas o que sabemos merecer.
Que escolhamos clarear.
Que clareie.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Eu não acredito no amor

Eu não acredito no amor. Muito menos que ele é cego e surdo. Isso deve ser outra coisa. Não sei qual coisa, mas nesse amor eu não acredito.

Quando dizem que ele pode ser bandido, observo desconfiado por um triz de porta e vejo o veredito: fulano está submisso. Nesse amor eu não acredito.

Tampouco acredito que é preciso abrir mão de si para conseguir alcançá-lo. Quando é não correspondido, pra mim é só mais um rito obsessivo. Uma busca por algo que vive em nossos cantos ermos e que é urgente.

Também não acredito que o dito amor platônico seja crível, pois ter alguém envolvido em um momento indescritível não é a mesma sensação desse tal amar sozinho. Isso me parece masoquismo.

Não acredito que seja racional, muito menos louco. Sinto que adicionar um suspiro no fim de qualquer sandice o torna poeta e justifica qualquer trambique.

Pegamos sintomas de nossas doenças sociais, inseguranças, forçações de barra e mendicâncias e etiquetamo-os como se fossem tipos diferentes de amor.

Perdidos entre tantos padrões, acho que acabamos por patologizá-lo. Tentando normalizar e normatizar algo que não tem encaixe, forma ou receita, buscamos um lugar, aceitação e acolhimento. Mas o tal do amor não pode ser físico ou terapêutico. Procuremos cura longe do outro e perto de nós mesmos.

Não nego que eu digo e vivo esses tipos de amor, que procuro e curo no outro, dizendo que é em nome dele, mas mesmo assim não acredito.

Acredito na possibilidade de um amor diferente.

Não sei que nome teria, nem se poderia existir mesmo. Mas se um dia eu descobrir, encontrar, desvendar, acho que vou acabar usando mesmo o bom e velho verbo amar. Mesmo desacreditado.

Eu não acredito no amor, não quando é colocado como um rito.
Mas confio que basta (re)significá-lo para transformar o mito do sentimento do amor em sentido.