quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

a menina que agigantou

E como pode coisa dessa? Menina que já tem idade impressa em documento agigantar de um dia para outro? "É doença...", disse a tia, "é loucura", disse a vó, "é contagioso", pensou consigo mesma. Mas antes fosse.

Já fazia algum tempo que sua pose encolhida não ornava com o abrilhantado olhar que semeava por corpos outros. Sentia um incômodo na ponta dos ossos, mas como quem agarra um sonho, não deixava que eles esticassem nem um pouquinho só. Seguia encolhida para parecer pequena, pois acreditava que a percepção dos outros estipulava seu tamanho e era inconcebível mudar isso. Já pensou o choque?

Um dia se viu presa frente a uma poça d'água e percebeu um outro eu distorcido no olho de quem olhava. E quem era aquele que olhava? Era ela. Era ela? Pensava, pensava, pensava. Refletia sobre como ela nunca tinha olhado para o próprio reflexo. Nunca tinha tentado se ver, só via o que os outros diziam ver, afinal a maioria sempre está certa, não é mesmo? Não. Começou a pensar e a se olhar e a acolher seus sentimentos, seus medos, seus erros, seus eus e de repente as pernas, os braços, os dedos, a cabeça e por que não os pés, assumiram outro tamanho. Maior, quase contundente. Assustada, procurou algum lugar em que sua imagem coubesse, pois aquela poça era pequena demais àquela altura.

Resolveu trocar a opinião deles por um espelho e não foi que deu certo? Conseguiu se ver e o espanto e medo que a dominavam foram trocados por um sorriso. O encolhimento foi exorcizado por um brilho que nunca tinha visto antes: o seu próprio. Sem desvios em lentes alheias.

Saiu andando com seus passos de gigante, deixando para trás a aparência que não lhe cabia mais. Pararam ela na rua mais vezes do que seus grandes dedos poderiam contar, sempre dizendo: "nossa menina, como você cresceu!" e ela respondia sorridente a cada pessoa que estranhava seu tamanho: "não cresci, não, só parei de me encolher".

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Sede

Um copo. Não sabia se estava cheio ou vazio, mas àquela altura, nem importava. Ela era cafona demais para acreditar em meios termos. Deu um gole.
Olhou pra cima. O céu enviava seus sinais vitais para ela de alguma forma e ela acreditava... Mesmo ultimamente tendo se sentido estrela perdida, porém não desperdiçada.
Abriu a mão e viu um lembrete rabiscado na palma. Entre as linhas que mostravam o futuro, ela esqueceu o que tinha que lembrar. Sinal de que não era importante.
Tomou mais um gole, mas a sede que sentia vinha da sede além da língua e do trato digestivo. Além das ranhuras da pele e dos olhos ressecados. Era um lugar de difícil acesso, mas que não era tão difícil de encontrar.
Então, virou o copo e nada. Mas não se preocupou, afinal, copo vazio também para em pé.


quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Lá em casa

Ouvi alguém bater na porta. Me assustei. Estranhei que naquele momento em que a casa estava cheia mais alguém poderia entrar. Abri a porta desconfiada, mas era inevitável. Fui olhada antes de olhar e já senti a intensidade do que aquele encontro iria propiciar antes mesmo de dizer "olá".
Ponderei, neguei, resisti, mas, quando vi, a porta estava escancarada, a casa vazia e ele havia entrado. Tomou conta de todos os espaços e eu deixei. 

Então, começamos a transformar a arquitetura daquele que era meu espaço. Comecei a achar que o espaço estava perdendo personalidade, mas mesmo assim eu deixei. Aos poucos fui percebendo algumas coisas fora do lugar. Objetos, retratos, sentimentos. E não me abalei. Pelo menos fingi não me abalar. Sempre achei estranha essa coisa de pertencimento, então apaguei a linha entre eu e ele e deixei que toda migalha minha fosse dele também. Controlada, possuída, governada. Quando olhei mais atentamente, tudo já tinha sido apossado e bagunçado, mas eu não interrompi o movimento, eu deixei que acontecesse.
De repente era mais fácil jogar aquela bagunça em um canto escuro, dentro daquele baú que ficava no canto da sala. E dos ruídos de amor que já haviam se tornado barulhos existenciais, ouvi o silêncio tomar lugar. Mais uma vez não agi. Eu deixei.

O mais estranho de todo esse movimento é que em alguma hora eu parti de lá. Deixei que aquele convidado se tornasse proprietário de tudo e me coloquei do lado de fora do portão do meu próprio lar. Eu deixei que esse fosse meu novo lugar e o assumi como se sempre tivesse vivido lá.

Bizarro pensar em como cheguei ali. Tão bizarro que o convidado percebeu que a casa estava abandonada e, em sua nova posição de dono, resolveu reformar o espaço, deixar a sua cara. O problema é que não havia estrutura pra tudo aquilo que ele queria. Ao invés de pincéis e marretas, ficamos só eu e ele. De repente, uma palavra mal colocada estourou o pote de açúcar. Assustamos, mas como não houve reação contundente, ele evoluiu. Uma ofensa explodiu estrondosamente o encanamento do banheiro. Minhas lágrimas se juntaram às águas do vazamento, então era como se nada tivesse acontecido. Não encontrando obstáculo, continuou sua obra. Aí, como alguém que põe uma porta abaixo, aconteceu. A violência que se aninhava perto de mim me deixou estática, com medo de que uma hora essa fúria fosse direcionada ao meu corpo ao invés da parede que ele já havia esmurrado tantas vezes. Mesmo assim, eu deixei.

Deixei tanto, permiti tantas coisas, que até o hóspede resolveu me deixar. E eu que estava do lado de fora da porta da minha própria vida, me vi pedindo a chave àquele que antes era somente um convidado. E ele já não se importava mais, havia jogado a chave pela janela (que agora era só um buraco escangalhado).

Aí ficamos eu e os escombros. As ruínas. Fiquei do lado de fora até perceber que a destruição tinha levado as portas. Não precisava de chave pra entrar. Voltei pra casa, mas àquela altura via tudo como irremediável. Resolvi me deixar pra trás. E deixei.

Aos poucos, fui engatinhando em direção ao centro de tudo. Parei e observei todo o caos depois de muito tempo vivendo à sua sombra. Tempestades e seca, dias de sol e noites que duravam semanas aconteceram. Mas aí resolvi olhar os escombros como partes minhas que precisavam de reparos. Talvez fosse a hora de abandonar a posição de vítima que aquela casa conhecia bem e conquistar o controle de cada tijolo, cada pedaço de tinta e de louça. Fragmentos são mais fáceis de serem remodelados.

Então, chegou a hora de deixar a confusão ir embora e limpar as partes mais medonhas e sujas. Lidar com cada trinco e cada falha estrutural. Agora, começo a colocar as paredes de pé e vejo que sou a arquiteta e a construtora do que habita meu lar. Do que me habita. Sou responsável pelo lugar em que estava, então vou assumir o lugar em que quero estar.

Na minha casa nova, as dobradiças das portas e os trincos das janelas serão reforçados, mas nada disso importa. São as novas vigas de ferro que vão tornar as intrusões menos drásticas. Elas aparecem só do lado de dentro, mas são o suficiente para proteger e construir meu lar. Lá em casa.