quinta-feira, 7 de maio de 2015

Intimidade forjada

Invocava o amor com a força de seis ciganas e quatro leitoras de tarô.
Forçava o desejo e cravava o corpo na intenção do outro como se jogasse búzios.
Eram inúmeras as encruzilhadas e nem me deixe começar a falar da projeção astral - afinal, hoje, projetar é amar em modo narcísico.

Insuportavelmente via o desejo distorcer distâncias e alongar (por demais) situações que nasceram e morreram pontuais. Era um baile dos mortos pela vivência de uma ilusão. Um carnaval com mais cinzas do que dias de duração.

Forjar intimidade - via isso se repetir por todo lugar. Estávamos todos viciados em ver potencial no outro de algo que nem nós poderíamos oferecer.
E na verdade o desejo trocava de pele. De tempos em tempos mudava a carne e preenchia outros olhares.

Não queria forçar nada, mas se pegava com o fórceps na mão. Sua intenção era um crime irremediável.

E ainda torcia para que viesse à luz o amor abrangente, livre... em sua dilatação naturalíssima do impossível.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Raso

Olhando de cima, não dava pra ver a profundidade. Resolveu testar a temperatura da água, como quem não quer tudo, e se deparou com o fundo nada fundo.

Era raso.
Gente rasa não se preocupa, não faz promessas.
Gente rasa vaza antes de que se chegue ao fim.

Não dá pra entrar de cabeça em gente rasa. É impossível mergulhar onde só cabem os pés - a não ser que procure um amor paraplégico.

Não enfiam os pés pelas mãos. Cada parte do seu corpo está onde (não) deveria. Sem atrevimento, com boia no braço.

Gente rasa não tem medo de se afogar. E sem medo não há coragem.
Gente rasa precisa de pirotecnia no sexo e não cria intimidade: tem que ir muito fundo pra ser íntimo. E lá, às vezes não tem luz. Gente rasa tem medo do escuro.

Mas gentes rasas também amam e são amáveis. Cativam e são cativadas. Dão risada. Fazem piada. E se apaixonam.
A única questão é: quão fundo você quer ir?

domingo, 3 de maio de 2015

Tempestade

Olhava atentamente para a tempestade que se formava no copo d'água.
Com a cabeça apoiada sobre uma mesa de madeira escura, via as gotas se transformarem em vozes de cada problema, medo e questão.

Caminhava para encontrar cada parte sua em partes outras que o caminho pudesse entregar. Se sentia pronta para aceitar tudo aquilo.
Quem sabe um dia conseguiria deixar aquela parte, que segurava, costurava e colava para não cair, pra outro caminho carregar...

Temos que estar sempre prontos para receber, para agradecer e para despedir. Mas a obrigatoriedade torna o ato falho.
Há mais encontro na despedida que o adeus propriamente dito.

E ainda havia a necessidade de entender. Exercício que a cada dia, quanto mais entendia, menos parecia compreender. Tentava entender por quê precisava entender tantas coisas.

Gole por gole foi vendo a tempestade passar e engolindo o que estava preso na garganta.
E assim foi... até que a tempestade passasse e outra chegasse. Chegou? Garçom, traz mais uma.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Monólogo do cabelo

"O que aconteceu com você? Tá diferente... Mudou o cabelo?"

A resposta que pensei em dar, formulada em meio segundo, resultado de muitas insônias foi:
"Na verdade, sim. Mudei muitas coisas - e o cabelo várias vezes -, mas essa transformação começou há algum tempo. Eu mesma demorei pra perceber. Fui dos tons mais pastéis aos mais intensos nas roupas, nos cabelos e no humor. Agora, diariamente, tento balancear os contrastes e o brilho das nuances internas. Comprei até um shampoo diferente e uns livros clássicos pra apoiar tudo isso. Entretanto, a diferença não está só no cabelo, mas na maneira de olhar para ele e para tantas outras coisas todos os dias como uma oportunidade de moldar o futuro e de construir quem eu realmente quero ser. E não é com a cor ou o volume dos fios que me ocupo, mas com a forma de trançar os dias. Antes acho que só estava, agora procuro ser para, então, poder estar de corpo, alma e cabelo."

Mas aí, respondi só um já esperado:
"Mudei sim, gostou?"

E enquanto ouvia a resposta, percebia - ainda buscava no outro o gosto de mim, a opinião do outro importava mais do que a do espelho, ou do que eu enxergava nele. É... A mudança havia começado, mas ainda estava bem longe do fim.