domingo, 23 de agosto de 2020

Eu tenho sentido raiva

Lembro-me bem do dia em que me deitei no divã e disse: eu não quero mais sentir essa raiva. A minha demanda à analista era a tradução de que a minha raiva não era permitida.
Como pode uma mulher bem-educada e banhada em pele e intelecto de privilégios sentir raiva?
Por que eu deveria ter o direito de sustentar esse sentimento que não se adequava às minhas fantasias de mulher boa, justa e calma que tanto me quiseram ser?
Qualquer coisa que endossasse a raiva libertava uma versão que eu – e tudo e todos que produziram esse eu – não podia controlar.
Ao sentir raiva da raiva que eu sentia, era como se eu tentasse emudecer em vão as vozes que eu não ouvia, dando força e ouvido a outras que aprendi serem melhores, mais fortes e mais dignas de escuta do que a minha. 
Em um silêncio de mim mesma, ecoava apenas a certeza de que qualquer raiva não era bem-vinda. Não de mim, pelo menos. Eu não podia ser mais uma vociferando o que sentia. 
E quando percebo que novamente estou caminhando de costas em direção ao meu próprio abismo, por estar respondendo ao outro mesmo que em silêncio, eu fico com raiva, mas a ela tenho tentado dar sustento.
Porque a raiva de mim mesma nunca foi por ninguém contestada, nem dita com qualquer uma das letras, nem sequer pensada. Era como se eu tivesse normalizado a raiva endereçada e fantasiada a mim e por mim.
Mas esses últimos dias eu tenho sentido raiva e deixado ela sair de mim para que, quem sabe, ela encontre um destino, tal qual uma carta sem endereço, guardada sempre a olhos vistos, mas teimosamente intocada.
Eu sou essa carta e também sou a raiva que a envelopa e toda a sorte de sentimentos que talvez dela saiam se eu um dia conseguir me permitir abri-la.
Eu tenho sentido raiva em vez de por ela ser engolida. Tenho tentado falar, faltar e falhar dentro dos limites dessa raiva de mim disfarçada de perfeccionismo. Sair da boca do próprio abismo (e da minha), tentando encará-lo de frente: movimento da raiva que eu tenho sentido.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

dia 23 - ou a tautologia do impossível

Reparei hoje até onde meus cabelos brancos estão chegando. Já passam de mais da metade da circunferência da minha cabeça. Eu que muitas vezes me envenenei para escondê-los, acho graça.

Nesses dias de estranhamento e esvaziamento do espelho, a sensação de cansaço de olhar pra dentro se amplia para além dos quarenta minutos semanais de análise lacaniana – acho estranhíssimo isso do divã ser, agora, a minha cama. Sempre fui muito de presenças e tatos e cheiros. Agora não sei mais.

O tempo que não passa e voa permite cultivar afetos e cansar da própria comida. Ficar presa no entre da dicotomia da saudade de quem não vejo e da vontade de ficar em silêncio. Não temos silêncio no isolamento. Mesmo sem filhos, sem gatos e cachorros, fico com meus pensamentos e o barulho dos carrinhos de compras do supermercado ao lado de casa.

E que vontade de ir correndo abraçar e beijar meus irmãos e amigos contraposta ao cansaço e ao esgotamento energético desse cenário (im)possível. Seria bom o vazio. Sem notícias, sem absurdos presidenciais e neoliberais (não necessariamente nessa ordem), sem desabafos disfarçados de piadas torpes sobre o fim do mundo. Mas aí lembro do vazio de dentro, a tal da falta angustiante, e quero o inexistente cheio. Fico com o nem meio cheio e nem meio vazio. Fico comigo.

Reparei hoje nos meus cabelos brancos e pensei que causarão espanto nas pessoas que não me veem há algum tempo, pois eles já se espalharam para terras jamais d'antes vistas. Antes se escondiam no risco do cabelo logo antes da divisão desleixada que faço em minha franja. Não mais.

Pensei no espanto dos outros e logo em seguida atinei que talvez ninguém nem repare.  Não por desinteresse, mas porque penso que será preciso nos conhecermos de novo. Nos reconhecer no outro que virou foto estática ou representação 2D. Reestabelecer ou reforçar os laços, a troca, a união – acho que talvez eu seja analógica demais para tempos de pandemia. 

Ainda duvido dessa reforma moral e social propiciada pela crise do codvid-19, com mais consciência social e de classe acompanhada pela vontade de, se não lutar, ao menos apoiar a dignidade humana – acho que talvez eu seja crítica demais para tempos de distopia. Mas ficaremos tanto tempo sem saber o tempo que precisaremos ficar sem amar corpo a corpo nossos amados que vamos precisar de segundos encontros para nos reconhecermos novamente. E nessa tautologia do impossível, meus cabelos são o de menos.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Espera

Esperava no portão e sorria como se seu coração viesse buscá-la.

Mesmo que parecesse que ela estava ansiosa, que todos os rebuliços do mundo habitavam seu estômago, ela calmamente pairava encostada nas barras de ferro do portão cinza daquela rua movimentada, amparada pelo vão do tempo que passou e pelo que ainda acreditava que viria.

"Nada nas mãos para se distrair?", pensava uma moça que passava... Como podia, nessa nossa realidade superacelerada não haver nem um fone de ouvido, nem um livro, celular, ou o que fosse para distraí-la dos momentos perdidos esperando? E o que será que ela esperava?

Altas expectativas passeavam pelas mentes que atravessavam as possibilidades de seus passos... Planos diversos foram feitos para ela: iria começar uma grande viagem, faria uma excelente mudança na carreira, estaria prestes a passar do gostar pro amar, da intenção pro peito de alguém, teria um filho... Nada disso. Enquanto não cruzava nem descruzava olhares com os transeuntes, apenas estava lá, presente, naquele espaço-tempo específico, absorta no momento que se apresentava tal como era: nada. Absoluta e totalmente nada, se nada fizéssemos dele.

Se ela contasse aos curiosos que nada esperava, seria questionada, teria seu corpo vasculhado à procura de alguma doença ainda a ser descoberta. Como podia, nessa encruzilhada que é a vida, não esperar por algo? Não se lançar a algum objetivo, alguma meta a cada possibilidade de segundo que a engrenagem do relógio apresentava?

Se ela respondesse, seria com seus pensamentos em mãos, seus sentimentos nos olhos, as angústias nos ombros e um discreto sorriso que revelava um segredo que ela não queria guardar: a espera estava no olhar de quem queria chegar a algum lugar e, para ela, bastava apreciar - mesmo que por uma brevidade de intenção - o tempo que acontecia e a vida que a ela se dava de presente, incessantemente.

Teria desistido da vida? Não. Havia desistido de transformar o viver em destino, em porto que nunca chega. Tinha, pela primeira vez, vivido. Mas não por muito tempo, pois o que fizemos do mundo é demasiadamente cruel para se viver somente.

Enfim, para o alívio dos que não conseguiriam entender esse seu traçado no mapa do mundo, seguiu seu caminho, deixando pra trás o portão aberto para quem quisesse se atentar à fugacidade do que é viver.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Mar

Universo desfragmentado em gotas, desmontado em microssegundos que não repetirão a mesma forma de antes. Geografia mudando a cada instante, futuro itinerante da força e do carinho das ondas. Bordas e fronteiras: todas imaginárias.

Como buraco sob o lençol do mar na beira da praia, que assusta e entrega ao próximo instante o que vai acontecer, a vida mergulha na gente e se escancara. Onde falta palavra sobra sal. Onde se arrisca um mergulho no outro, fica a intuição e a ilusão de emergir em si.

A ânsia de cuidado que desembrulha no estômago parece ancestral e lembra aquele tempo de flor no deserto. Ainda não choveu por aqui, mas a cicatriz promete céu cinza e trovoada. Tempestade no oceano, prelúdio do que nos precede.

Força cósmica, ilógica e a coragem de ser feliz que eu não perdi, guardei.
Fico aqui, esperando o tempo me deixar escolher ter tempo disso. Finjo que não sou eu a virar ampulheta e dou corda na promessa do (a)mar - (o) que quer que seja.